Pode a
literatura explicar ou refletir a sociedade na qual ela está inserida, com
todos os seus movimentos históricos, com todas as mudanças pelas quais as
sociedades evoluem, ou a literatura apenas conta uma história que nada tem a
ver com a HISTÓRIA, algo completamente fora de contexto, uma ficção no mais
estrito sentido da palavra?
O
desenvolvimento das ciências sociais, as quais passaram a se utilizar de
métodos de análise tão rigorosos quanto os das ciências naturais, abriu um
vastíssimo campo de estudos sobre diversas áreas. Dentre elas, a literatura
passou a ser analisada como algo mais do que apenas histórias oriundas da
imaginação de um escritor, mas como algo mais profundo, uma representação e/ou
reflexo do real, uma maneira distorcida de se perceber a realidade, um espaço
de crítica e várias outras tentativas de definição que, antes de definir, abrem
mais espaço à especulação. Contudo, é inegável o impacto que a literatura, em
geral, e alguns livros, em particular, têm sobre as sociedades. Por isso, a
literatura acabou merecendo uma atenção à parte, sendo interpretada por meio de
diversas tendências ao longo do tempo, à medida que as ciências sociais
evoluíam. Livros passaram a ser analisados e a ser criticados de uma forma cada
vez mais detalhada e com métodos cada vez mais precisos. A análise, ou crítica
literária, estava começando a tornar-se uma ciência.
O livro,
enquanto criação, é algo meramente subjetivo. Há alguém que o escreve e alguém
que o lê. E, nesse diálogo, abre-se um imenso leque de interpretações que
dependem do olhar que cada leitor lança sobre a obra. Contudo, sem deixar de
lado interpretações pessoais, não podemos ignorar os novos olhares e
compreensões que passamos a ter de campos como a História, a Psicanálise, a
Linguística, a Biologia, a Sociologia etc. O avanço nesses campos permitiu que
pudéssemos utilizá-los para – além de procurar entender o ser humano,
individual e coletivamente – analisar a literatura e como ela se insere no nosso
psiquismo e nas nossas relações interpessoais – seja refletindo ou inventando a
realidade.
Essas ciências
acima citadas auxiliaram no embasamento do que se convencionou chamar de
métodos críticos. Dentre eles, temos: a crítica genética, a crítica psicanalítica,
a crítica temática, a sociocrítica e a crítica textual. Esses métodos ora se
afastam ora se aproximam, utilizando-se de elementos uns dos outros para compor
um painel mais abrangente desse algo ao mesmo tempo simples e complexo que é a
literatura. Como o próprio homem, aliás.
Eu poderia
desenvolver uma comparação entre os diversos métodos na tentativa de encontrar
os limites onde eles se encontram e se interpenetram. Porém, este tipo de
trabalho se tornaria por demais longo e exaustivo, se prestando melhor a uma
tese ou um livro. Assim, decidi-me a me ater apenas à sociocrítica.
Sociocrítica é
um termo relativamente recente que serve para designar uma ideia antiga. A
partir do momento em que as ciências sociais começaram a surgir e a se firmar como
tais, começaram a refletir sobre as realidades socioculturais, tanto dentro de
um mesmo espaço (cidade, país) quanto em espaços diferenciados. Além disso,
essa análise passou a ser realizada tanto de forma sincrônica quanto diacrônica
(e aqui há um paralelo com a linguística).
A mudança de
mentalidade que ocorreu em virtude de diversos fatores que revolucionaram o
modo de agir e de pensar – Iluminismo, descobrimento da América, Revolução
Francesa etc. – fizeram com que a sociedade se transformasse, abrindo espaço
para novas possibilidades e criando necessidades até então desconhecidas. A
literatura anunciava e prenunciava essas mudanças sociais, participava dos
acontecimentos ao invés de se manter à margem. A literatura, conforme dizia
Madame de Staël, passara de ser arte para ser arma. O que combina com a máxima
que diz que a pena é mais forte que a espada. A arte, antes vista como algo
abstrato, passou a ser um produto da História (produto, enquanto refletia os
movimentos sociais; produtora, quando atuava de modo a modificá-los). A
produção literária assumiu um caráter de diálogo entre o autor e o leitor.
Cabia à sociocrítica analisar o autor e a obra, não como divindades em seus
Olimpos, mas como elementos participantes do diálogo com seu público. Para
apoiar essa ideia, podemos recorrer à Claude Duchet quando este nos diz que a
sociocrítica visa ao próprio texto como espaço onde se desenrola e se efetiva
uma certa socialidade.
O Iluminismo e a
Revolução Francesa, principalmente, tornaram a noção de política como algo que
fazia parte do cotidiano das pessoas, e não como algo pertencente apenas a uma
pequena classe de privilegiados. A filosofia, por exemplo, teve que rever seus
conceitos de disciplina meramente especulativa, tornando-se uma disciplina política
e atuante. Ou seja, de uma filosofia baseada em Platão, voltada para
abstrações, passou-se a uma filosofia mais aristotélica, baseada no empirismo,
analisando as coisas como elas se apresentam ao mundo. A própria visão de
‘homem’ passou por mudanças, substituindo-se a visão religiosa por uma visão do
homem como um ser ativo social e historicamente, um elemento provocador de
mudanças por meio de sua influência no meio no qual está inserido. Esse homem
passou a se questionar sobre o seu lugar e propósito no mundo. Da mesma forma,
a literatura passou a ser questionada sobre sua utilidade e o seu significado.
Percebeu-se que a literatura altera-se de acordo com as mudanças da sociedade,
adapta-se às mudanças no pensamento e nas ciências. A literatura segue o curso
da História, de um modo diacrônico, adaptando-se às configurações que vão se
sucedendo. Mas a literatura não é uma simples documentação de fatos históricos
– para isso existe a História. Ao mesmo tempo que ela reflete, ela também
constrói, também inventa.
Nesse ponto,
vale ressaltar a importante contribuição das ideias de Karl Marx. O marxismo
procurava explicar os acontecimentos históricos por meio das relações sociais e
da luta de classes, e a literatura não escapou a essa ótica. Para o marxismo,
“a literatura e a cultura deveriam ser repensadas como efeitos e como meios de
uma última instância econômico-social”. Isso porque, segundo eles, “a
literatura não é apenas uma prática restrita aos grandes escritores. Ela é
também um mercado e uma prática extensiva”.
Entretanto,
preso a essa visão reducionista onde as relações econômicas tornavam-se o foco
central de sua análise, o marxismo que executava suas primeiras leituras ficava
bitolado a uma análise desprovida de um rigor científico. Posteriormente, a
interpretação marxista buscou auxílio no campo da semiótica literária e da
psicanálise, o que abriu um novo leque de possibilidades.
É, de fato,
inegável que o meio exerce uma forte influência sobre o trabalho literário.
Quando escrevem, os autores refletem a sua época, a sua classe social e o
pensamento dominante. Escritores que consideramos ‘machistas’, por exemplo,
estavam simplesmente espelhando a condição da mulher à época, quando o conceito
de ‘machismo’ sequer existia. O mesmo é válido para o preconceito racial e para
a homofobia. Mas também é inegável que muitos escritores mantêm-se à parte de
determinados acontecimentos de sua época, muitas vezes por não perceberem a
importância que aquele fato terá futuramente. É o que ocorreu com os acontecimentos
de 1968 em Paris, Praga e México. O ano de 68 foi emblemático e está tendo
reflexos até hoje. Recentemente, foram lançados diversos livros sobre o tema,
no Brasil e no mundo. Entretanto, 1968 não está na literatura de 1968. Apesar
de todos os protestos (especialmente os de Paris, em maio) e passeatas, 1968
não fez parte da literatura da época. Posteriormente, com os seus reflexos
aparecendo aqui e ali, começou a figurar na literatura, culminando na enxurrada
de livros que têm sido escritos atualmente. Só muitos anos depois percebeu-se a
influência que aquele ano teve para o mundo. Na época, contudo, enquanto o
processo histórico ainda estava se desenrolando, isso passou despercebido.
Existe, também,
um processo de vislumbre de um processo histórico que ainda está se
desenrolando e projetá-lo para o futuro. Alguns autores, analisando fatos
históricos recentes, cujos efeitos ainda estão começando a se fazer sentir,
projetam um futuro decorrente daquele momento. É o que acontece em livros como
“A revolução dos bichos”, de George Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous
Huxley. Analisando aquele momento histórico, eles projetam os seus efeitos em
um determinado período de tempo, muitas vezes alcançando uma precisão
inacreditável nas suas previsões.
Há, ainda, a
análise sobre um fato histórico que não ocorreu. É o que acontece em livros
como “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick. Nesse livro, o autor imagina
como seria o mundo se a Alemanha e o Japão tivessem vencido a 2ª Guerra
Mundial. É um interessante jogo especulativo que mostra o que poderia ter
acontecido se a história tivesse tomado outro rumo.
Temos, nesse
último exemplo, uma tentativa de ler nossa própria história. O exemplo de 1968,
ao contrário, demonstra a nossa incapacidade de ler a história no momento em
que ela está acontecendo – temos, como exemplo, as revoluções comunistas, que
acabaram se tornando regimes totalitários.
A sociocrítica,
longe de ser apenas um método crítico, é uma maneira de descobrirmos a nossa
relação com o outro e com o mundo. Uma maneira de entendermos nossa própria
influência dentro de um contexto histórico sempre sujeito a mudanças. E nós,
participantes desse contexto, mudamos junto com ele. Somos como Alice, de Lewis
Carrol, quando ela reclama: “nunca tenho certeza do que eu vou ser de um minuto
para o outro!”.