terça-feira, 26 de março de 2013

O poder das mulheres em “Crônicas de Gelo e Fogo”

A série “Crônicas de Gelo e Fogo” trata sobre as questões do Poder. Os homens lutam, aliam-se, traem, mentem, lutam e morrem buscando adquirir mais poder. Eu disse ‘os homens’?
Nesta série, num período em que as mulheres não têm voz, sendo utilizadas como moeda de troca por meio do casamento, por exemplo, para forjar alianças entre Casas nobres, as mulheres mostram-se muito mais poderosas do que se poderia imaginar.
A rainha Cersei, por exemplo. Seu pai, Lorde Tywin, a casou com o rei Robert Baratheon após este subir ao trono, esperando, com esta aliança, aumentar o poder de sua Casa. De esposa submissa ao autoritário, promíscuo e bêbado rei, Cersei transformou-se em uma leoa – o símbolo de sua casa é um leão – e resolveu conquistar o poder para si. Usando seus encantos femininos, tramou a morte de Robert, eliminou perigos em potencial, como é o caso das ex-Mãos do Rei, Jon Arryn e Eddard Stark, e governou o reino, de fato, enquanto os reis de direito, Joffrey e depois Tommen, ambos crianças, ocupavam-se de situações menores. Isolou-se de todos enquanto perseguia seu sonho de poder, querendo tornar-se Rainha de Westeros e governar sozinha. Fria e calculista, não se detém diante de qualquer obstáculo, tentando removê-lo de qualquer jeito, mesmo que o custo para isso seja o assassinato e a traição.  
Sansa Stark, a submissa e tímida filha de Lorde Stark, que apenas sonhava em casar-se com o rei Joffrey e viver uma vida conforme as canções sobre cavaleiros, sobreviveu à morte do pai, de sua guarda doméstica, de sua loba, Lady, e ao sumiço de sua irmã, Arya. Suportou os maus tratos do rei Joffrey e depois fugiu, auxiliada por um bobo, e foi parar nas mãos de Mindinho, o Mestre da Moeda, adaptando-se à nova situação fingindo ser sua filha bastarda, Alayne. De tímida e sonhadora, Sansa aprendeu a fingir submissão e a ser dissimulada, para poder sobreviver ao jogo dos tronos.
Arya Stark, a filha mais nova de Lorde Eddard, sempre se mostrou rebelde com sua condição feminina, que a obrigava a se manter submissa aos desejos dos homens. Optou pela espada, ao invés da agulha de tricô, agindo mais como um guerreiro do que como a dama que deveria ser. Após a morte do pai, conseguiu fugir de Porto Real e acabou vivendo grandes aventuras, escondendo seu nome nobre e, até mesmo, sua condição feminina – Arya passou por menino em algumas situações. Sozinha, acabou indo até a longínqua cidade de Bravos. Teimosa e obstinada, não se dobra facilmente a quem quer que seja, e chega até mesmo a matar, caso isso se mostre necessário para a sua sobrevivência.



Neste ponto, Arya Stark assemelha-se a Brienne, a chamada Donzela de Tarth. Alta, larga de ombros e forte demais para uma mulher, Brienne escolheu agir como um cavaleiro, chegando até mesmo a fazer parte da Guarda Arco-Íris, do Rei Renly Baratheon, e sendo confundida com um guerreiro, na maioria das vezes. Obstinada, mantém-se firme na promessa que fez a Catelyn Stark de encontrar sua filha Sansa e levá-la são e salvo para casa.
Daenerys, a herdeira da Casa Targaryen, os antigos reis de Westeros, era apenas uma garota tímida e submissa aos desejos do irmão, Viserys, o herdeiro do Trono de Ferro. Com a morte do irmão e do marido, Khal Drogo, Daenerys herdou seu khalasar e, com força de vontade e astúcia, começou a montar seu próprio exército, iniciando pelo resto do khalasar de seu ex-marido, que se manteve fiel a ela após a morte de Dhrogo, e comprando eunucos escravos que eram treinados como guerreiros, os Imaculados, além de contratar forças mercenárias. Perdeu sua inocência e aprendeu a governar, com o intuito de reclamar para si o Trono de Ferro, à força, se preciso.
Vemos, também, a figura da senhora Melisandre, a misteriosa sacerdotisa vermelha, adoradora do deus R’hllor, o Senhor da Luz. Melisandre consegue o apoio da esposa de Stannis Baratheon, o herdeiro legítimo do Trono de Ferro, e acaba se tornando muito influente junto ao rei. Com seus poderes e suas visões, aconselha Stannis com uma influência tão grande quanto sua Mão, o ex-contrabandista Davos Seaworth. Onde quer que vá, Melisandre estende sua influência, quer seja na corte de Stannis, quer seja na Muralha, com a Patrulha da Noite. Em muitos casos, Melisandre age à revelia do rei Stannis, atendendo a seus próprios desígnios.   
Em um mundo machista e patriarcal, as mulheres vão traçando seu caminho para adquirir poder, tendo de recorrer à astúcia e dissimulação e, não raro, utilizando-se de seus encantos femininos para dobrar os homens a sua vontade, enquanto fazem com que os homens pensem que eles é que estão realmente no comando.
Neste ponto, “Crônicas de Gelo e Fogo” traça um retrato da mulher atual, ainda tentando se firmar em um mundo machista e tentando encontrar seu lugar em uma sociedade patriarcal que não quer abrir mão de seus privilégios. 

sexta-feira, 15 de março de 2013

Dom Casmurro: um narrador entre o ser e o não-ser


A obra ‘Dom Casmurro’, assim como as demais obras de Machado de Assis, apresenta um imenso leque de opções de onde o teórico, seja ele um profissional ou um estudante de literatura, pode tirar elementos variados para a sua abordagem, seja ela feita do ponto de vista psicológico, social ou político. Talvez nenhum outro escritor brasileiro soube explorar tão bem aspectos tão diversos, antevendo situações e antecipando estilos, bem como trabalhando aspectos psicológicos complexos que, posteriormente, foram corroborados por estudiosos de psicologia e psicanálise.       
Em termos puramente literários, Machado foi um autor sui generis, de um estilo próprio, sem ficar preso aos estilos literários de sua época. Não há um Machado romântico e outro realista, embora se encontrem traços desses dois estilos, e de outros, em suas obras. Há um escritor que não se prendeu a modismos, que brincava com os estilos, passeava por eles, flertava ora com um ora com outro, mas não se comprometendo com nenhum.
Machado manteve em comum com os naturalistas o desvelamento das doenças, tanto humanas quanto sociais. Contudo, enquanto estes focalizaram sua atenção para os elementos que se mantinham à margem da sociedade (como exemplo, “O cortiço”, de Azevedo), Machado voltou-se para as camadas mais altas da sociedade. Percebeu que os problemas sociais que imperavam no Brasil partiam ‘do alto’, de sua classe dominante, e se espalhavam pelas camadas mais baixas da sociedade. Em “Dom Casmurro” temos o exemplo das relações de classe demonstrado nas relações entre os personagens principais e os secundários, numa alusão ao relacionamento entre a classe dominante e as camadas mais pobres da população brasileira. De um lado temos D. Glória, viúva de um fazendeiro e deputado, a qual vive da renda gerada pela venda da fazenda e do arrendamento de escravos para terceiros. Orbitando à sua volta estão a prima Justina, o irmão Cosme e o agregado José Dias. Este, sem recursos próprios e vivendo às custas de D. Glória, mostra-se subserviente com a sua benfeitora, procurando tudo fazer para agradá-la, mesmo que apenas na aparência. A própria D. Glória vive da exploração de escravos, os quais aluga para terceiros, daí obtendo sua renda. Ainda hoje vemos esse mesmo tipo de relacionamento entre a classe detentora dos meios de produção e do capital, de um lado, e do proletariado, de outro. Se, atualmente, temos leis que, teoricamente, amparam os indivíduos das classes mais baixas, na época de Machado a classe dominante mantinha uma espécie de exploração institucionalizada, já que não havia leis específicas com relação ao trabalho, além de que a escravidão era legalizada. Na obra, D. Glória era manipuladora, impondo sua vontade sobre os demais membros da casa, mesmo que não o fizesse de forma tão enérgica, assim como as classes dominantes manipulavam e impunham suas vontades sobre as classes inferiores. O mesmo se dá com Bento. Valendo-se da sua posição de narrador e da sua posição de classe dominante, a todo momento ele manipula e impõe sua versão dos fatos, numa clara tentativa de convencer o leitor – e, talvez, a si próprio – da traição da esposa. A realidade para ele é a sua noção de realidade. Capitu – oriunda de uma família socialmente inferior à de Bentinho –, não tem direito à defesa. Sua voz é calada pela voz possante e dominadora de Bentinho (enquanto voz do narrador e do proprietário), sua versão dos fatos não tem importância diante das certezas delirantes do marido.
Bem diferente, também, foi o tratamento dado à questão do amor em su
as obras. Rompendo com o Romantismo, onde o amor tudo podia e os amantes eram capazes de superar os maiores obstáculos em nome desse amor, Machado nos mostrou uma visão mais realista, onde o amor geralmente sucumbia aos interesses de riqueza e posição social – Virgília, de “Memórias póstumas”, é um ótimo exemplo – ou andava de braços dados com um ciúme doentio que acabava por destruí-lo – é o caso de Bento e Capitu em “Dom Casmurro”. Nas obras ‘românticas’, o amor vencia os interesses de ascensão social e de riqueza ou, pelo menos, andava de braços dados com ele. O casal geralmente conseguia realizar as suas aspirações sociais ao mesmo tempo em que nutriam um amor verdadeiro um pelo outro. Machado nos mostra um amor em segundo plano, deixado de lado em favor das aspirações sociais. Os casamentos, na sua maior parte, são realizados por interesse. Para a mulher, o casamento seria uma forma de ascensão social e obtenção de riqueza – ou de mais projeção, caso ela já fosse proveniente de uma família abastada; para o homem, ter uma família constituída era um símbolo de status, principalmente quando ele exercia um cargo público relevante. Assim, para suprir o amor que o casamento não trazia, recorria-se ao adultério, formando os famosos “triângulos machadianos”. O adultério, para o homem, era algo considerado normal e, até mesmo, necessário; para a mulher era um crime, passível de ser punido com a morte. No caso da mulher machadiana, nem sempre havia a necessidade de se consumar o adultério. O que importava, em alguns casos, era o jogo de sedução. Nesse caso, a mulher buscava apenas um ingrediente que movimentasse a sua vida insípida. 
Uma de suas técnicas narrativas era uma quase pobreza de descrições, a ausência da paisagem, a aparente quase imobilidade da trama. As situações das obras machadianas, ao contrário do movimento e ação encontrados nos romances ditos “românticos”, eram voltadas para o interior, concentravam-se na análise psicológica e na reflexão filosófica. Dessa forma, as tramas dos romances machadianos poderiam, com pequenas modificações que não prejudicariam a narrativa, ser transplantadas para qualquer lugar e/ou época. Machado também antecipou formas modernas de narrativa, tais como uma estrutura fragmentária, não-linear; a postura metalingüística de quem escreve e se vê escrevendo; tramas que nem sempre apresentam uma conclusão, o que permite leituras diversificadas.   
Machado, acima de tudo, foi um cronista do seu tempo, retratando com uma fina ironia as mazelas da sociedade de sua época. Buscou na sociedade os temas que tratava em sua obra: as frivolidades das convenções sociais, o caráter relativo da moral humana, a normalidade e a loucura. Trabalhou, principalmente, com a essência humana, com o universal. O tema central da obra de Machado é o problema da identidade. Machado trabalha com os limites da razão e do ser, o que culminou no tema central de “O alienista”. Seus personagens são dúbios. As grandes mulheres dos seus romances são, geralmente, dissimuladas; os personagens debatem-se entre os seus desejos e as convenções sociais, preocupam-se com a opinião pública. Bentinho, por exemplo, se vê às voltas com a adoração que tinha pela mãe e o amor que sentia por Capitu, e o desejo de agradar a ambas. Isso gera uma questão: em que medida existimos por meio dos outros? O ciúme doentio que Bentinho nutria por Capitu tornou-se o ponto central de sua vida.  
Em “Dom Casmurro” Machado trabalha com a questão da memória, criando uma hábil trama entre o fato real e o fato imaginado. O que aconteceu e o que pensamos que aconteceu? Bentinho tem plena convicção da traição de Capitu baseado nas “evidências” que sua mente concebe. Ele cria toda uma situação baseada nas suas desconfianças, no seu ciúme, na sua insegurança. Capitu passa a ser a personagem de uma trama criada pelo próprio Bento. Bentinho distorce a realidade narrando as impressões que ele tem dos acontecimentos. O personagem-narrador confunde-se com o autor.
Bentinho é um personagem que mutila o seu “eu”. Age movido pelas opiniões alheias, submisso às vontades da mãe e de Capitu. Até o sentimento que nutria por Capitu foi-lhe revelado por José Dias. No Capítulo X, página 16, o narrador nos diz que “mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou”.
Ou seja, ao contrário do ‘convicto’ Bento Santiago da fase adulta, cheio de certezas sobre a traição de Capitu, o Bentinho adolescente era uma marionete sem vontade própria, um joguete dos desejos da mãe e dos caprichos de Capitu, alheio aos seus próprios sentimentos e desejos. A personalidade fraca de Bentinho pode ter sido favorecida pela falta da figura masculina após a morte do seu pai. O agregado José Dias e o seu tio Cosme não lhe serviam como modelos masculinos. Tudo isso – a ausência da figura paterna, o agregado e o tio anulados pela presença e determinação de D. Glória e a insegurança de Bentinho frente às figuras femininas – denuncia uma crise e desmantelamento de uma sociedade patriarcal. Também se nota esse fato ao analisarmos a família Pádua. No Capítulo XVI, ‘O administrador interino’, na página 24, encontramos a seguinte passagem: “(...) mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa”.
Ou seja, Capitu repete com Bentinho a mesma influência que a mãe e ela própria tinham com seu pai, Pádua. O que denota que, apesar do fato de a figura do marido ser considerada a autoridade máxima, Machado reconhecia e denunciava a influência que a mulher tinha sobre a figura masculina, mesmo que aparentasse uma posição de submissão.
A prova da força da figura feminina nos é dada no mesmo capítulo, mostrando-nos um Pádua subserviente não só aos desejos da mulher e aos caprichos da filha, mas também à vontade de mulheres como D. Glória, a quem D. Fortunata fora pedir auxílio: “não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe”.
O próprio Bento, no Capítulo XXXI, ‘Curiosidades de Capitu’, página 44, diz que “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem”.
Ou seja, o próprio Bentinho reconhece sua fraqueza e a força de Capitu. E, por mais que gostasse da primeira namorada, deixava-se levar pelas maledicências de José Dias, como quando este foi visitá-lo no seminário e, perguntado sobre Capitu, disse que “tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo, enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela...”, ou quando fala que “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada”.   
É interessante notar que Machado, deliberadamente, não acusa nem inocenta Capitu. A convicção da traição é fruto exclusivo da mente de Bento, embora em nenhum momento o narrador apresente uma prova cabal da traição da esposa. A certeza é apenas sua. Da mesma forma, não se tem certeza da inocência de Capitu. Ou seja, Machado se isenta de fazer julgamentos. Afinal, o que menos importa é saber se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Nas obras de Machado, percebe-se claramente uma total relativização quanto aos atos praticados por seus personagens. Ao contrário da sociedade que criticava, a qual baseava-se em conceitos sobre o bem e o mal, o certo e o errado, Machado compreendia a impossibilidade de conceituá-los adequadamente, revelando um profundo senso da complexidade do ser humano e de suas contradições.

terça-feira, 12 de março de 2013

Os textos de informação como elemento formador da nossa literatura


Os assim chamados textos de informação, embora causem muitas controvérsias, são de grande importância para entendermos nossa história e, até mesmo, para o desenvolvimento da literatura que viria a se desenvolver no país. As controvérsias causadas por estes textos vão desde fatos históricos a discussões sobre serem considerados como literatura ou não. Além disso, fomos testemunhas de um fato raro entre os povos: apesar de os habitantes naturais do Brasil – os índios – serem ágrafos, nosso país teve o seu nascimento ligado diretamente ao símbolo escrito.   
Quanto aos fatos históricos, colocam-se dúvidas sobre a autenticidade de algumas passagens, inclusive pelo fato de que textos diferentes referem-se a um mesmo fato de maneira diversa. Na carta de Pero Vaz de Caminha, por exemplo, é narrado que dois degredados ficaram em terra, por ordem de Cabral, e que dois grumetes resolveram ficar naquela terra, quando da partida das naus, por vontade própria. Na carta do Piloto Anônimo – que muitos questionam ser de fato um piloto –, nada é dito quanto aos dois grumetes. Quanto aos degredados que aqui ficaram, é narrado que ambos tiveram que ser confortados pelos próprios índios, já que choravam desconsolados. Caminha não se refere a esse fato, dando-nos a entender que os degredados aceitaram a ordem sem nenhum questionamento. Em contrapartida, ambos os relatos concordam sobre a inocência dos nativos em relação a sua nudez. Eles não demonstram nenhuma vergonha em se mostrarem nus àqueles estrangeiros. Nem mesmo as mulheres demonstram qualquer tipo de pudor. E o interessante de se notar é que, embora venham de uma cultura onde a nudez é vista como algo vergonhoso, inconcebível, não se nota nos relatos que os exploradores sentiram-se incomodados com a nudez dos índios. Mostraram-se surpresos com a naturalidade e a inocência com a qual os nativos exibiam sua nudez, mas em nenhum momento pareceram incomodados ou chocados. Em contato com algo que, para os índios, era natural, passaram a encarar esse fato como natural também, embora para a sua cultura não o fosse.    
Lendo os textos desse período, podemos depreender dois pontos básicos: a preocupação dos cronistas em descrever a nova terra a ser conquistada, seus frutos, seus animais, seus rios e sua gente, de um lado; o assombro resultante da visão de um mundo diferente do que já haviam visto, de outro. A descrição da terra tem um propósito bem específico: fornecer elementos a El-Rei para que este pudesse decidir sobre um possível processo de colonização da nova terra, sobre as possibilidades que esta terra oferecia como fonte de riquezas para a Coroa. A descrição dos índios, sua inocência e amabilidade, bem como o conhecimento que possuíam da terra e a sua total integração com a natureza, pode servir como uma indicação de que aquele povo poderia ser utilizado como mão-de-obra, sem muitas dificuldades e sem ônus para a Coroa.
A descrição da floresta, dos animais, das flores, dos frutos demonstra, além de uma fonte de informações das possibilidades que aquela terra oferecia, devido às novidades que possuía em abundância, o assombro do europeu diante de um mundo novo, desconhecido, que impressiona pelo tamanho e exuberância, pelos mistérios que aquela imensa muralha verde pode ocultar em suas entranhas. Temos aí a admiração pela grandiosidade, o medo dos perigos ocultos, o respeito pelo desconhecido, a excitação pelas possibilidades, elementos do Sublime, um conceito explorado por Burke, no século XVIII, e utilizado soberbamente por Joseph Conrad em sua obra “O coração das trevas”, o qual pode ser demonstrado nesta passagem do livro: “O lugar parecia extraterreno. Estávamos habituado a vê-lo sob a forma de um monstro agrilhoado e domado, mas ali – o que víamos ali era uma coisa monstruosa e livre”. E esta parece ser a impressão que os cronistas têm da nova terra: um lugar selvagem, indomado, poderoso. Diferente de tudo o que eles já haviam visto em suas viagens e explorações. O desconhecido, ali, se fazia presente de uma maneira inteiramente nova para os exploradores. E esse devia ser o sentimento dos índios em relação aos homens brancos: a suntuosidade e curiosidade de suas vestes, as naus imensas, as armas e enfeites desconhecidos dos nativos. Um assombramento mútuo a dominar cada cultura. 
O Sublime, embora à época ainda não estivesse estruturado como conceito, marcaria o encontro do homem branco europeu com o índio nativo da nova terra. Longe de ser um encontro de intenções puramente mercantilista, o convívio do europeu com o índio teve implicações outras que influenciou a formação da própria terra recém-descoberta. Tanto que podemos observar em documentos e escritos dos jesuítas uma espécie de crítica aos costumes adotados pelos europeus radicados na nova terra, os quais pareceram amalgamar comportamentos europeus – tidos como ‘civilizados’ – com comportamentos demonstrados pelos índios – os chamados ‘selvagens’, povos sem ‘cultura’. Os colonos radicados no Brasil passaram a ter relações com as índias – e, posteriormente, com as negras –, praticaram a poligamia etc. A própria terra, com seus novos produtos sendo exportados para a Europa, modificou hábitos alimentares e comportamentais.   
Temos, aí, o reconhecimento da figura do ‘outro’. O índio, que teve a cultura do homem branco sendo-lhe impingida aos poucos, perdendo pouco a pouco sua própria identidade; e o homem branco, que teve que adaptar seus hábitos para as necessidades impostas por aquela nova terra onde sua cultura não tinha ainda conseguido se impor. A colônia, sendo explorada para lucro do europeu; e a metrópole, tendo que lidar com a nova terra que tinha em seu poder.  
Além disso, o europeu teve a sua cultura, considerada civilizada e superior, confrontada com os povos tidos como selvagens, tidos como uma cultura inferior ou, até mesmo, como povos sem cultura. Contudo, alguns estudiosos perceberam traços de civilidade que não eram encontrados mesmo em culturas européias. Além disso, alguns costumes considerados bárbaros pelos europeus, encontraram equivalentes em sua própria cultura. Enquanto condenavam alguns atos de ‘selvageria’ dos índios, perceberam os mesmos elementos utilizados, por exemplo, na Santa Inquisição.     
Quanto ao fato de serem considerados literatura ou não, os textos de informação ainda suscitam debates. É comum vermos esses textos inseridos, em livros sobre literatura, em um período conhecido como Quinhentismo, assim como temos o período conhecido como Seiscentismo ou Barroco. Muitos questionam o fato de esses textos de informação serem considerados como literatura, por diversos fatores: eram documentos – muitos oficiais, como a carta de Caminha – sobre as explorações que vários povos fizeram com o objetivo de conquistar novas terras para suas respectivas coroas; limitavam-se a descrever elementos da nova terra, tais como os índios, a floresta, os rios etc.; seus autores eram escrivães, pilotos, historiadores etc., estudiosos aparentemente sem pretensões literárias; seus autores eram europeus, e não nativos da nova terra. Contudo, se observarmos atentamente alguns documentos, veremos que determinadas partes não se limitam apenas a narrar fatos e descrever a geografia do local. Um documento estritamente oficial seria isento de linguagem poética, de senso de humor e de trocadilhos maliciosos. Caminha, talvez até mesmo inconscientemente, deu um certo tom “literário” à sua Carta, talvez inspirado pela grandiosidade do quadro que o cercava. Além disso, a admiração e o deslumbramento de alguns trechos das diversas crônicas escritas sobre o Brasil dão-lhes determinados elementos encontrados apenas em obras consideradas como sendo literatura. Além disso, as descrições que foram feitas sobre os índios serviram, mais tarde, de inspiração para o Romantismo, que tinha como uma de suas características o nacionalismo. Em oposição à literatura européia, onde os heróis nacionais são valentes cavaleiros medievais, na literatura brasileira temos a figura do índio como sendo o herói nacional. Além disso, temos toda a exuberância da natureza, que os românticos ora apresentam como pertencente à pátria, ora apresentam como uma espécie de refúgio à vida atribulada dos grandes centros urbanos de então. Temos em José de Alencar um dos autores que recuperou o elemento indígena, transformando-o em herói de seus romances: O Guarani, Iracema e Ubirajara. Esses livros apresentam o índio em três momentos distintos: em Ubirajara, a ação se passa em um período pré-cabralino, apresentando o índio em seu estado mais puro, uma espécie de índio original; em Iracema, temos o contato do índio, representado pela personagem-título, com o europeu, mostrando o que seria a origem do povo que seria chamado de ‘brasileiro’; e em O Guarani, o índio ‘europeizado’, fruto do contato com os colonizadores, principalmente com os jesuítas. Para a composição de O Guarani, Alencar pesquisou diversos documentos do período quinhentista. Posteriormente, temos em Mário de Andrade e o seu Macunaíma, já no período Modernista, uma retomada do elemento indígena como tema literário. Macunaíma é um anti-herói, índio que nasce preto e vira branco, representado a própria mistura racial que determinou o povo brasileiro, fruto dos cruzamentos entre índios, negros e brancos. Em ambos os casos – em Alencar e em Andrade –, temos uma espécie de volta às origens, um mergulho no período quinhentista como uma forma de resgatar a figura do índio, o verdadeiro índio, e uma busca por uma identidade nacional. 
Contudo, é inegável a influência da literatura portuguesa, em particular, e da européia, em geral, na formação da nossa própria literatura, já que esta era a única literatura que conhecíamos e que, portanto, era a única que poderia nos influenciar. Perguntado se outros escritores influenciaram seus escritos, Milton Hatoum respondeu que todo escritor é, antes de tudo, um leitor, portanto, não há como escapar a influências externas. O mesmo ocorreu com nossa literatura. A busca de uma literatura brasileira é, antes de tudo, a busca pelos elementos formadores de nossa terra, as influências que recebemos dos vários povos que aqui aportaram. E, mesmo em menor grau, essa sempre foi uma via de mão dupla.
Em um mundo que começou a se globalizar a partir das longas viagens marítimas e do comércio entre países, a figura do outro começou a se fazer cada vez mais presente.  

sábado, 2 de março de 2013

Camões e Bocage: mitos e fatos confundindo vida e obra dos dois poetas



Bocage é um dos mais importantes poetas de Portugal, formando com Luís Vaz de Camões e Antero de Quental a Santíssima Trindade da poesia lusitana. Se incluirmos Fernando Pessoa, seriam o Quarteto Fantástico da poesia portuguesa. Inclusive, não raro nos deparamos com comparações entre Bocage e Camões, tanto pela importância de ambos na literatura portuguesa quanto por semelhanças entre a vida dos dois poetas. Muitos dos acontecimentos da vida de Bocage guardam semelhanças com situações que ocorreram com Camões. Porém, é necessária alguma cautela ao examinarmos esses acontecimentos, já que na vida dos dois poetas fatos biográficos e mito não raro se confundem.  
Bocage é um confesso admirador de Camões, com quem se compara nas desventuras da vida, mas reconhece-se um poeta “inferior” ao mestre, conforme se pode observar nas estrofes abaixo:

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa no fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:
[...]
Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Bocage parecia perseguir, de forma consciente, essas semelhanças, levando-nos a considerar que muitas das situações foram planejadas pelo próprio Bocage para que se parecessem com fatos ocorridos com Camões. Alguns fatos estão registrados, enquanto outros são de procedência duvidosa, talvez uma invenção do próprio Bocage para fazer com que sua vida se assemelhasse a de seu mestre. Como todo bom poeta, Bocage era um fingidor, conforme nos diz Fernando Pessoa.
Além das semelhanças entre a vida dos dois poetas – ambos foram soldados, viajaram por países do Oriente, morreram praticamente na miséria –, também apresentaram semelhanças no campo literário. Um exemplo é o nome que Bocage deu à sua obra, publicada ainda em vida, a qual tem o mesmo nome de uma obra de Camões, publicada postumamente: Rimas. A obra de Camões foi publicada em cinco volumes, enquanto a de Bocage foi publicada em três; enquanto Camões retratou, em Os Lusíadas, as glórias da história de Portugal, desde sua formação como nação até a época das Grandes Navegações, Bocage retratou as mudanças pelas quais passavam Portugal e o resto da Europa; se em Os Lusíadas Camões tratou do episódio da morte de Inês de Castro, Bocage também não se mostrou indiferente a esse episódio, escrevendo À Morte de Inês de Castro, que ele inicia com dois versos retirados do Canto III, Instância 135, do próprio Os Lusíadas; ambos fizeram referência aos deuses da mitologia grega – Camões utilizando-os conforme exigia o modelo do épico; Bocage seguindo, inicialmente, o modelo utilizado pelo Arcadismo, o qual ressuscitou o modelo clássico.
Um outro paralelo, citado pelos críticos e estudiosos de literatura, refere-se ao uso dos sonetos como forma de expressão. Tanto Camões quanto Bocage utilizaram-se dessa forma para compor alguns de seus melhores poemas, utilizando-se do formalismo do soneto para realizar a expressão, de forma condensada, dos estados emocionais.
Além disso, Bocage, sempre que pôde, utilizou-se de paralelismos com Os Lusíadas em seus poemas. Um exemplo é o Canto e soneto ao Capitão Lunardi, onde Bocage utiliza-se da comparação do citado Capitão Lunardi com personagens mitológicos, tais como Ícaro e Prometeu, além de personagens históricos de Portugal, como Magalhães e Vasco da Gama, ambos presentes em Os Lusíadas. Além disso, no mesmo poema Bocage contrapõe a “escuridade” e a luz, com aquela representando aqueles que iam contra o progresso, e esta representando os homens ilustrados, os sábios representantes da ciência. Os “ilustrados varões” são aqueles que defendem o progresso, numa clara referência ao início de Os Lusíadas (“As armas e os barões assinalados”). Camões retratou os marinheiros portugueses, homens audazes que se lançaram ao mar em busca de novas terras, como sendo os homens que trariam o progresso a Portugal e, no mesmo Os Lusíadas, o Velho do Restelo como símbolo da precaução e do conservadorismo.
Ou seja, guardadas as devidas proporções, e sem diminuir o mérito de Bocage nas letras portuguesas, é inegável que ele teve Camões como modelo, e procurou moldar a sua vida de acordo com a do seu mestre, procurando imitá-lo nos transes da vida bem como na estética literária.