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O período
Trovadoresco marcou o início da Literatura Portuguesa. Neste período, muitos
autores/cantores escreveram diversas canções que chegaram até nós, compiladas
em diversos cancioneiros, tais como o da Biblioteca Nacional e o da Vaticana. Muitas
obras, com o tempo, acabaram se perdendo, mas um rico material conseguiu chegar
até nós, dando-nos uma ideia do que ocorreu naquele período em termos de uma
literatura ainda incipiente. .
Mesmo
tendo, na prática, começado antes disso, oficialmente o período trovadoresco
tem seu início estipulado em 1198 (ou 1189), quando o trovador Paio Soares de
Taveiróz escreveu uma cantiga intitulada “Cantiga de Garvaia”, a qual ele
ofereceu a Maria Pais Ribeiro.
Em tese,
as cantigas dividiam-se em quatro categorias: cantigas de amigo, cantigas de
amor, cantigas de escárnio e cantigas de maldizer. As duas primeiras eram
cantigas consideradas “cultas” e eram feitas por pessoas ligadas à nobreza
(mesmo que não fossem nobres) e cantadas na corte, enquanto as duas últimas
eram cantigas consideradas “vulgares”, isto é, eram feitas pelo vulgo (povo),
e, portanto, não gozavam de grande prestígio, sendo mais apropriadas ao
ambiente de uma taverna.
Além
disso, classificar uma cantiga dentro de uma destas categorias nem sempre é
tarefa fácil. Não raro vemos elementos de uma categoria misturados aos de outra,
bem como alguns autores compunham cantigas em mais de uma categoria.
Em relação
a Paio Soares de Taveiróz, suas cantigas refletem bem isso. Nos versos abaixo,
vemos o que poderia ser qualificado como uma cantiga de amor: um homem cantando
o seu amor para uma “senhor”, ou seja, para uma dama (à época, não existia o
feminino ‘senhora’.
“No mundo
non me sey parelha
Mentre me
for como me vay,
Ca já
moyro por vós e, ay,
Mya senhor
branca e vermelha,
Queredes
que vos retraya
Quando vos
eu vi em saya?
Mao dia me
lavantey
Que vos
enton non vi fea.
As
cantigas de amor se caracterizavam pelo fato de sempre serem cantadas por um
homem, enquanto as de amigo refletiam a voz feminina (embora fossem homens quem
as escrevessem). Porém, as cantigas de amor se caracterizavam pelo fato de o
cavalheiro cantar/poetar para uma dama inacessível, seja pela posição social
mais elevada que ela ocupava, seja pelo fato de o cavalheiro referir-se a ela
de uma maneira quase de adoração, como se a “senhor” fosse uma santa a ser
adorada em seu altar. Neste trecho de Taveiróz, percebemos que o eu-lírico é um
homem dirigindo-se a uma “senhor”, o que caracterizaria esta cantiga como sendo
de amor. Porém, encontramos, neste trecho, elementos que não pertencem a uma
cantiga de amor. Vemos elementos que denotam sensualidade e cobiça sexual, bem longe
da pureza e da castidade das cantigas de amor, como no trecho:
“quando
vos eu vi em saya?”
No caso, o
poeta/cantor refere-se à nudez da amada, denotando uma sexualidade que não era
comum nas cantigas de amor, sendo mais comuns nas cantigas de amigo. As
cantigas de amor podem ser classificadas como idealistas: o cantor falava de um
amor impossível, acessível somente para uma adoração, muitas vezes ignorando
que era objeto dessa adoração. Não havia o desejo, por parte do cantor, de
consumar fisicamente este amor. O ideal do cantor era a ‘coita’ de amor, ou
seja, o sofrimento que o cantor sentia por este amor impossível. Sofrer por
este amor era o mais alto sentimento a que o cantor aspirava.
Já as
cantigas de amigo são de cunho mais realista: o eu-lírico feminino canta um
amor que foi realizado, mas que logo depois foi perdido. Sendo o eu-lírico
constituído por mulheres do povo, o cantor não tinha pudores em cantar uma
relação mais carnal, com aspirações sexuais. Ou seja, o eu-lírico cantava a
perda de um amor já consumado.
Neste
outro trecho, abaixo, temos o que pode-se classificar como sendo uma cantiga de
amigo. O eu-lírico é feminino, como pode-se observar pelo trecho “do meu amigo
que me fez pesar”.
Par Deus,
donas, bem podedes jurar
Do meu
amigo que me fez pesar,
Mays Deus
é que cuyda me a gãar
De lhe
saberen Ca me quer gran ben.
A
referência ao “amigo” demonstra que quem fala é uma mulher que foi abandonada,
como fica claro pela palavra “pesar”. Enquanto nas cantigas de amor o homem
cantava um amor impossível de ser realizado, nas cantigas de amigo a mulher
chorava por um amor realizado e perdido. Além disso, no primeiro verso temos
“Par Deus, donas, bem podedes jurar”, o que mostra que o eu-lírico, no caso,
uma mulher, está lamentando para suas amigas a perda do seu amor, o que é outra
característica das cantigas de amigo. Nas cantigas de amor, o eu-lírico
masculino não canta seu amor para ninguém em especial; nas cantigas de amigo, o
eu-lírico feminino canta sua dor para sua mãe, irmãs ou amigas.
Paio
Soares de Taveiróz misturava elementos das cantigas de amor e das cantigas de
amigo, talvez pelo fato de que, a esse tempo, as cantigas ainda não tivessem
recebido uma maior atenção e estudo, e as classificações e limites ainda não
estivessem bem definidos; talvez o fizesse de propósito. O fato é que o cantor
mistura elementos das duas cantigas, mesmo que de forma sutil.
Nesta
outra cantiga,
- Dês que
essas donas vistes,
Falaron-vos
ren d’amor?
Dizede, se
as conhocistes,
Qual delas
é a melhor?
Non fostes
conhocedor,
Quando as
non departistes
o
eu-lírico é masculino, o que caracterizaria uma cantiga de amor. Contudo, duas
características fazem com que esta canção se afaste das cantigas de amor e
aproxime-se das de amigo. Em primeiro lugar, o eu-lírico parece estar inquirindo
uma outra pessoa, provavelmente um amigo, sobre duas mulheres das quais esse
amigo se teria enamorado, situação que era comum nas cantigas de amigo, quando
o eu-lírico feminino compartilhava suas desventuras com outras mulheres. Em
segundo lugar, nas cantigas de amor o eu-lírico masculino enamorava-se de uma
“senhor” apenas, e por ela nutria um amor platônico. Nesta cantiga, vemos
claramente que o amigo do eu-lírico está dividido entre o amor de duas
mulheres, e que este amor não seria platônico, mas sim consumado fisicamente,
como fica claro no trecho “Dizede, se as conhocistes”, uma vez que o termo
“conhecer” era utilizado no sentido de se ter tido uma relação sexual.
Por estes
trechos analisados fica claro que Paio Soares de Taveiróz não se deteve em
trabalhar apenas um tipo de cantiga e nem se preocupou em trabalhá-las de forma
isolada. Nas suas cantigas, é muito comum encontrarmos elementos das cantigas
de amor em cantigas de amigo, e vice-versa. Além disso, também encontramos
certa dose de ironia tanto em cantigas de amor quanto nas de amigo, ironia esta
mais apropriada a uma cantiga de escárnio. A própria Cantiga da Garvaia seria
uma cantiga de amor, porém, por conter ironias, há quem conteste esta
classificação, considerando-a como uma cantiga de escárnio.