sábado, 31 de maio de 2014

Paio Soares de Taveiróz e as cantigas de amor e de amigo do período Trovadoresco



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O período Trovadoresco marcou o início da Literatura Portuguesa. Neste período, muitos autores/cantores escreveram diversas canções que chegaram até nós, compiladas em diversos cancioneiros, tais como o da Biblioteca Nacional e o da Vaticana. Muitas obras, com o tempo, acabaram se perdendo, mas um rico material conseguiu chegar até nós, dando-nos uma ideia do que ocorreu naquele período em termos de uma literatura ainda incipiente. .
Mesmo tendo, na prática, começado antes disso, oficialmente o período trovadoresco tem seu início estipulado em 1198 (ou 1189), quando o trovador Paio Soares de Taveiróz escreveu uma cantiga intitulada “Cantiga de Garvaia”, a qual ele ofereceu a Maria Pais Ribeiro.
Em tese, as cantigas dividiam-se em quatro categorias: cantigas de amigo, cantigas de amor, cantigas de escárnio e cantigas de maldizer. As duas primeiras eram cantigas consideradas “cultas” e eram feitas por pessoas ligadas à nobreza (mesmo que não fossem nobres) e cantadas na corte, enquanto as duas últimas eram cantigas consideradas “vulgares”, isto é, eram feitas pelo vulgo (povo), e, portanto, não gozavam de grande prestígio, sendo mais apropriadas ao ambiente de uma taverna.
Além disso, classificar uma cantiga dentro de uma destas categorias nem sempre é tarefa fácil. Não raro vemos elementos de uma categoria misturados aos de outra, bem como alguns autores compunham cantigas em mais de uma categoria.
Em relação a Paio Soares de Taveiróz, suas cantigas refletem bem isso. Nos versos abaixo, vemos o que poderia ser qualificado como uma cantiga de amor: um homem cantando o seu amor para uma “senhor”, ou seja, para uma dama (à época, não existia o feminino ‘senhora’.

“No mundo non me sey parelha
Mentre me for como me vay,
Ca já moyro por vós e, ay,
Mya senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraya
Quando vos eu vi em saya?
Mao dia me lavantey
Que vos enton non vi fea.  

As cantigas de amor se caracterizavam pelo fato de sempre serem cantadas por um homem, enquanto as de amigo refletiam a voz feminina (embora fossem homens quem as escrevessem). Porém, as cantigas de amor se caracterizavam pelo fato de o cavalheiro cantar/poetar para uma dama inacessível, seja pela posição social mais elevada que ela ocupava, seja pelo fato de o cavalheiro referir-se a ela de uma maneira quase de adoração, como se a “senhor” fosse uma santa a ser adorada em seu altar. Neste trecho de Taveiróz, percebemos que o eu-lírico é um homem dirigindo-se a uma “senhor”, o que caracterizaria esta cantiga como sendo de amor. Porém, encontramos, neste trecho, elementos que não pertencem a uma cantiga de amor. Vemos elementos que denotam sensualidade e cobiça sexual, bem longe da pureza e da castidade das cantigas de amor, como no trecho:

“quando vos eu vi em saya?”

No caso, o poeta/cantor refere-se à nudez da amada, denotando uma sexualidade que não era comum nas cantigas de amor, sendo mais comuns nas cantigas de amigo. As cantigas de amor podem ser classificadas como idealistas: o cantor falava de um amor impossível, acessível somente para uma adoração, muitas vezes ignorando que era objeto dessa adoração. Não havia o desejo, por parte do cantor, de consumar fisicamente este amor. O ideal do cantor era a ‘coita’ de amor, ou seja, o sofrimento que o cantor sentia por este amor impossível. Sofrer por este amor era o mais alto sentimento a que o cantor aspirava.
Já as cantigas de amigo são de cunho mais realista: o eu-lírico feminino canta um amor que foi realizado, mas que logo depois foi perdido. Sendo o eu-lírico constituído por mulheres do povo, o cantor não tinha pudores em cantar uma relação mais carnal, com aspirações sexuais. Ou seja, o eu-lírico cantava a perda de um amor já consumado.
Neste outro trecho, abaixo, temos o que pode-se classificar como sendo uma cantiga de amigo. O eu-lírico é feminino, como pode-se observar pelo trecho “do meu amigo que me fez pesar”.

Par Deus, donas, bem podedes jurar
Do meu amigo que me fez pesar,
Mays Deus é que cuyda me a gãar
De lhe saberen Ca me quer gran ben.

A referência ao “amigo” demonstra que quem fala é uma mulher que foi abandonada, como fica claro pela palavra “pesar”. Enquanto nas cantigas de amor o homem cantava um amor impossível de ser realizado, nas cantigas de amigo a mulher chorava por um amor realizado e perdido. Além disso, no primeiro verso temos “Par Deus, donas, bem podedes jurar”, o que mostra que o eu-lírico, no caso, uma mulher, está lamentando para suas amigas a perda do seu amor, o que é outra característica das cantigas de amigo. Nas cantigas de amor, o eu-lírico masculino não canta seu amor para ninguém em especial; nas cantigas de amigo, o eu-lírico feminino canta sua dor para sua mãe, irmãs ou amigas.
Paio Soares de Taveiróz misturava elementos das cantigas de amor e das cantigas de amigo, talvez pelo fato de que, a esse tempo, as cantigas ainda não tivessem recebido uma maior atenção e estudo, e as classificações e limites ainda não estivessem bem definidos; talvez o fizesse de propósito. O fato é que o cantor mistura elementos das duas cantigas, mesmo que de forma sutil.

Nesta outra cantiga,

- Dês que essas donas vistes,
Falaron-vos ren d’amor?
Dizede, se as conhocistes,
Qual delas é a melhor?
Non fostes conhocedor,
Quando as non departistes

o eu-lírico é masculino, o que caracterizaria uma cantiga de amor. Contudo, duas características fazem com que esta canção se afaste das cantigas de amor e aproxime-se das de amigo. Em primeiro lugar, o eu-lírico parece estar inquirindo uma outra pessoa, provavelmente um amigo, sobre duas mulheres das quais esse amigo se teria enamorado, situação que era comum nas cantigas de amigo, quando o eu-lírico feminino compartilhava suas desventuras com outras mulheres. Em segundo lugar, nas cantigas de amor o eu-lírico masculino enamorava-se de uma “senhor” apenas, e por ela nutria um amor platônico. Nesta cantiga, vemos claramente que o amigo do eu-lírico está dividido entre o amor de duas mulheres, e que este amor não seria platônico, mas sim consumado fisicamente, como fica claro no trecho “Dizede, se as conhocistes”, uma vez que o termo “conhecer” era utilizado no sentido de se ter tido uma relação sexual. 

Por estes trechos analisados fica claro que Paio Soares de Taveiróz não se deteve em trabalhar apenas um tipo de cantiga e nem se preocupou em trabalhá-las de forma isolada. Nas suas cantigas, é muito comum encontrarmos elementos das cantigas de amor em cantigas de amigo, e vice-versa. Além disso, também encontramos certa dose de ironia tanto em cantigas de amor quanto nas de amigo, ironia esta mais apropriada a uma cantiga de escárnio. A própria Cantiga da Garvaia seria uma cantiga de amor, porém, por conter ironias, há quem conteste esta classificação, considerando-a como uma cantiga de escárnio.