A novela ‘O Físico Prodigioso’, do
português Jorge de Sena, é uma obra cheia de signos, o que nos permite obter as
mais diversas leituras, dependendo do ponto de vista ao qual nos atenhamos. A
história se passa em uma espécie de Idade Média, por si só um período repleto
de simbologias. Temos aí o mito do Rei Arthur e sua busca pelo Santo Graal; a
simbologia do Cristianismo sendo imposta pela Igreja Católica; as bruxas e seus
rituais; dragões cuspidores de fogo andando sobre a terra e voando alto nos
céus. Utilizando-se desse período para desenvolver sua novela, Jorge de Sena
pôde brincar com todos esses símbolos, misturando-os, alterando-os e
acrescentando alguns de sua própria invenção.
A Idade Média na qual Sena situa
sua obra nos faz lembrar o D. Quixote e sua novela de cavalaria. O próprio
Físico é um cavaleiro andante, assim como D. Quixote – e como o próprio Jorge
de Sena, longe de sua terra, em um exílio voluntário devido ao regime salazarista
que tiranizava Portugal. Os três cavaleiros perseguem cada qual o seu ideal: D.
Quixote enfrenta o que, nos seus delírios, pensa serem gigantes; o Físico e
Sena procuram o amor e a liberdade. Literariamente Jorge de Sena resgata, mesmo
que parcialmente, os heróis que enfrentavam mil batalhas contra dragões, contra
exércitos ou mesmo contra moinhos. Assim como D. Quixote montado em seu
Rocinante, o Físico chega em seu cavalo para encontrar a sua Dulcineia, na
forma de D. Urraca.
O paralelo mais evidente com o
Físico é a figura de Jesus Cristo. Porém, podemos rastrear várias outras
figuras diante das inúmeras simbologias utilizadas por Jorge de Sena. A figura
do Físico parece funcionar como um espelho que emite reflexos diversos, alguns
deles distorcidos, que se completam apenas quando conseguimos ver o conjunto. Cada
reflexo funciona como uma estrada que, em determinado momento, se bifurca em
duas ou mais direções, oferecendo caminhos diversos para o andarilho que nela
viaja. Porém, os caminhos acabam por se reunir mais adiante, voltando a ser o
mesmo caminho. Porém, o viajante, esse, já não é mais o mesmo.
A dualidade permeia toda a
narrativa de ‘O Físico Prodigioso’. Entretanto, fugindo do maniqueísmo que
costumamos encontrar na religião, que divide tudo entre Bem e Mal, pureza e
pecado etc., e até mesmo de algumas obras literárias, que dividem os
personagens em bons e maus – principalmente na literatura infanto-juvenil –,
Sena nos apresenta personagens que vivem neste limite, procurando eles mesmos o
conhecimento – o autoconhecimento. Os personagens se veem como se estivessem em
frente a espelhos – onde a imagem refletida, mesmo sendo outra, é a mesma.
Decifrar e compreender estas imagens, unindo-as em uma só, seria a sua meta.
Para fazer sua novela, Sena
utilizou-se de várias imagens, de dualismos, de ambiguidades – inclusive
semânticas –, explorando todas as facetas que a literatura lhe permite
explorar, inclusive alterando a narrativa entre a prosa e a poesia. Em ‘O
Físico Prodigioso’, porém, o real e o imaginário não se opõem, não são
contrastantes. São imagens distintas que se refletem e se misturam para formar
uma única imagem.
É perceptível a influência do
surrealismo na obra. Sena utilizou-se de aspectos técnicos peculiares para a
fluidez do texto – como é o caso de colunas duplas para narrar eventos
simultâneos –, a fragmentação temporal e espacial, além do diálogo intertextual
com vários autores, como Camões, e com vários gêneros, como é o caso da
utilização de cantigas de amigo, um marco da época medieval, porém compostas
pelo próprio Sena. Subverter e superar fronteiras é algo que está presente
durante todo o desenrolar da narrativa.
Narrativa esta, por sinal, que não
segue os moldes consagrados pelo romance tradicional. Sena brinca com o texto,
avança, recua, dá voltas, volta ao mesmo ponto. Por sinal, o experimentalismo
narrativo da novela nos é informado pelo próprio Jorge de Sena na introdução à
novela que consta da edição brasileira de 2009. Sena nos diz que “o
experimentalismo narrativo, jogando com o espaço, o tempo, a repetição variada
do texto, etc., é uma das bases essenciais desta novela” (p. 20). Quanto à
narração, podemos encontrar três tipos distintos que demonstram esse jogo
proposto por Sena: a narração paralela, a narração espiral e o mise em abyme.
A narração paralela é auxiliada
pela própria diagramação do texto. Sena utiliza-se da abertura de colunas que
narram, simultaneamente, histórias – ou possibilidades – que ocorrem ao mesmo
tempo e, às vezes, no mesmo espaço. A princípio, podemos considerar que uma
destas histórias é real e que a outra se passa em um mundo onírico, apenas uma
fantasia vivida pelo Físico. A utilização do itálico em uma destas colunas,
diferenciando-a da outra coluna e do texto “normal”, reforçaria esta ideia.
Contudo, devido à capacidade do Físico de transitar em diferentes
espaços/tempos, devemos considerar a possibilidade de que as duas situações
sejam reais, que tenham acontecido ou estejam acontecendo, possibilidades em
diferentes realidades. Na verdade, o que julgamos ser sonho pode ser real, e o
que julgamos real pode ser sonho.
O primeiro caso de narração
paralela ocorre já no primeiro capítulo, quando o Físico encontra-se tomando
sol no vale próximo ao castelo de D. Urraca e aparecem as treês damas do
castelo. Na coluna da esquerda é narrada a aparição das damas; na coluna da
direita, elas são descritas como se fossem deusas (ps. 30-31). Vale ressaltar a
dualidade que ocorre entre esses dois episódios: enquanto, na primeira coluna,
as damas são descritas de um modo casto e ficam surpresas e ligeiramente
envergonhadas ao ver o Físico, na segunda coluna as deusas transbordam
sensualidade. Elas vêm nuas, cabelos soltos, seios balançando. A tensão entre o
pudor e o erótico é uma das características que permeia toda a obra.
O segundo caso ocorre quando D.
Urraca narra ao Físico a situação que a levou a casar-se com D. Gundisalvo
Matamoros. Novamente temos, nesta narração paralela, a tensão entre o casto e o
erótico. Enquanto na coluna da esquerda D. Urraca narra uma relação casta com
D. Gundisalvo, quase um relacionamento paternal, a coluna da esquerda está
repleta de elementos eróticos, inclusive homossexualidade masculina e feminina
(os. 72-75). As duas narrações são reflexos distintos de uma mesma situação.
O terceiro caso ocorre no capítulo
XII, no final da novela. Narra o momento em que dois bandos distintos chegam
simultaneamente a um castelo e a uma cidade, respectivamente. A narrativa
refere-se a duas situações que ocorrem ao mesmo tempo, porém em espaços
diferentes. Estes espaços, contudo, apresentam algumas similaridades, tais como
um espaço vazio (um pátio, no castelo; uma praça, na cidade) e escombros. Esta
narração paralela, contudo, não termina com o fim das colunas. Ela continua com
o texto regular, com a alternância das duas narrativas, até que uma cantiga
junta as duas.
Além disso, outro exemplo de
narração paralela, porém de forma indireta, ocorre no capítulo II (os. 45-46),
quando as três damas propõem várias histórias sobre a origem do Físico e ele
não nega nenhuma das versões. Ao contrário, aceita a todas como verdadeiras
quando afirma que “porque, tanto quanto sabia, elas estavam recordando sua
própria vida. Tudo aquilo era verdade assim” (p. 46).
Longe de se contradizerem ou repelir-se,
as histórias complementam-se, como se fossem reflexos em um espelho. Apenas
reunindo-se as duas imagens é que teríamos uma imagem completa e complexa da
realidade que elas representam.
A narração espiral consiste em
repetir certos fragmentos da narrativa sem que estes fragmentos, de fato, se
repitam. Em alguns situações observamos que o Físico volta no tempo e no espaço,
nos levando de volta a momentos já acontecidos. Entretanto, o que observar é
que, nesses casos, jamais os fatos narrados acontecem da mesma maneira que
tinham ocorrido antes. Sempre há algo de diferente, quer seja na ação, quer
seja no aspecto físico do local, ou ambos. O próprio Físico afirma que “nunca
sai certo o momento a que se volta... Nunca... (p. 90).
Um dos exemplos disso seria quando
o Físico tem o primeiro encontro sexual com o Demônio, no capítulo I. Nesse
momento, o Físico “sofria aquilo como vexame inapelável que não o excitava, e
nem sequer lhe dava horror ou repugnância (p. 27). Já no capítulo VI, após
voltar no tempo, a situação modificou-se, como fica provado na seguinte
passagem: “entregou-se ao Demônio, que fez dele o que quis [...] Quando aquilo
acabou, levantou-se, sacudiu-se, passou as mãos pelo corpo sujo, e sentiu a
volúpia de estar sujo assim” (p. 89).
O mesmo se dá com o uso de certas
palavras, como tronco. Pode-se entendê-la tanto como sendo o tronco de uma
árvore quanto sendo o tronco humano, refletindo uma mistura entre o elemento
humano e a natureza. Isto nos leva ao ciclo da vida.
O mise en abyme, segundo o Dicionário de Narratologia, seria “a
própria narrativa ou um dos seus aspectos significativos, como se no discurso se
projectasse ‘em profundidade’ uma representação reduzida, ligeiramente alterada
ou figurada da história em curso ou do seu desfecho”. Isto pode ser observado
no capítulo I, quando o Físico está descansando no vale e as donzelas
aproximam-se, cantando uma canção (os. 32-34). Esta canção funciona como uma
micro-história embutida na novela, resumindo-a e, num deslocamento temporal,
antecipando o seu desfecho. Estas duas histórias, interpondo-se e
interpenetrando-se, narram a mesma coisa. Novamente temos, aí, um jogo de
espelhos onde a canção representa um reflexo da novela. Da mesma forma que
podemos observar os dois reflexos separadamente, a completude apenas se dá na
junção de ambos.
Ainda em relação a essa
duplicidade, a esse jogo de espelhos, também temos o cenário utilizado para a
novela. Simbolicamente, a Idade Média – não tendo sido especificado o ano ou
mesmo o século – seria uma transposição do período salazarista do século XX. O
próprio Jorge de Sena nos dá uma pista sobre isto quando nos diz que “esta
época, dando-me uma distância pseudo-histórica, permitia-me uma liberdade da
imaginação em que o fantástico, com todas as implicações eróticas e
revolucionárias como eu sentia ferver em mim na pessoa do Físico, podia ser
usado para tudo” (p. 20).
A Idade Média representou, na
história da humanidade, um período que ficou marcado pela opressão aplicada
tanto pela nobreza quanto pela Igreja, esta se utilizando da temida instituição
chamada de Santo Ofício, fato que vemos narrado na novela, quando o Físico,
denunciado à Inquisição, é preso e torturado. No Portugal do período
salazarista também temos a opressão a todos aqueles que se opunham ao regime,
com prisões, torturas e mortes. Assim, apesar da distância espaço-temporal,
temos aí uma grande similaridade entre os dois períodos, dois reflexos que se
completam e se ajustam para contar uma história.
Ainda no campo do simbolismo, podemos
associar a figura do Físico com a de outra figura mítica de Portugal, que é D.
Sebastião. Miticamente, D. Sebastião é uma figura que, após ter desaparecido na
batalha de Alcácer Quibir, ressurgirá para trazer Portugal de volta à sua
glória. O Físico, o único capaz de curar D. Urraca de uma doença que a acomete
há muito tempo, seria D. Sebastião, o único que poderia ‘curar’ Portugal,
representado por D. Urraca, da ‘doença’ que o acometia há séculos – a submissão
aos interesses e poderes estrangeiros, em contraste com a glória do período das
grandes navegações –, bem como de uma doença mais recente – a opressão do
regime salazarista.
Ou seja, teríamos aqui um perfeito
jogo de espelhos, onde o espelho – e, por extensão, a própria literatura –
reflete a imagem do mundo real, um reflexo deformado, mas ainda assim um
reflexo.
A figura do Demônio, nesse caso,
seria ainda mais emblemática. Ele não é o Demônio estigmatizado pela Igreja
Católica como um ser votado exclusivamente a fazer o mal – e, contraditoriamente
à sua função, castigando aqueles que praticam o mal. Ele, por meio de um pacto
que fez com a madrinha do Físico, concede-lhe poderes em troca de favores
sexuais, um elemento erótico que sugere um ato de perversão, segundo a época em
que a história se passa, que é o homossexualismo. Além disso, o diabo está
associado com a oposição ao ethos dominante, à rebeldia. O Físico Prodigioso é
um “símbolo da liberdade e do amor” (p. 17), segundo o próprio Sena. Além
disso, o mesmo Sena afirmou que “O Físico Prodigioso” é a sua obra mais
autobiográfica. Nesse caso, o próprio Demônio seria um alter-ego de Sena, ambos
não querendo nada do Físico, apenas que ele “viva, que ele vá pelo mundo com o
seu poder, e que eu assista à sua eternidade” (p. 113). O Físico, assim como
Sena, é um andarilho, um peregrinador. O Físico, o Demônio e o próprio Sena
seriam os três o mesmo reflexo, ou reflexos de uma mesma coisa. Marcelo
Pacheco, em uma tese sobre “O Físico Prodigioso”, traça um paralelo entre o
conto “A Biblioteca de Babel” e o romance “O nome da rosa”, onde o mosteiro no
qual se passa a história possui uma biblioteca no fundo da qual há um espelho,
o que ocorre em “A Biblioteca de Babel”. Em “O Físico Prodigioso”, não
encontramos uma biblioteca. Contudo, pelas várias influências que a novela
apresenta, por sua intertextualidade, ela própria seria uma biblioteca. Jorge
de Sena confessa que baseou sua novela em dois trechos retirados de “O Orto do
Esposo”, um livro de exemplos do século XV; além dele, temos várias referências
a passagens bíblicas – a própria Bíblia sendo vista como uma coleção de textos,
uma minibiblioteca –, que vão de Adão e o Éden, retratado no Gênesis, até
Jesus, retratado no Novo Testamento, e com quem o Físico tem paralelos
evidentes; as novelas de cavalaria, principalmente com “D. Quixote”, de
Cervantes – o Físico é alguém extremamente idealista, visto que não utiliza
seus poderes para adquirir riqueza pessoal, assim como o Quixote – e, também,
Jesus -, que não luta por riquezas materiais; “O retrato de Dorian Gray”, de
Oscar Wilde – quando o Físico envelhece, os monges da Inquisição passam a ter o
seu rosto jovem; “O Fausto”, de Goethe; o mito de Narciso; as cantigas de amigo
do trovadorismo português; “A máquina do tempo”, de H. G. Wells – assim como o Físico,
quando o personagem consegue retornar ao passado, as situações desenrolam-se de
maneira diferente, embora, em todas elas, sua noiva acabe morta. E, por que não
dizer, o mito de Teseu e o Minotauro. “O Físico Prodigioso”, com suas voltas e
retornos e espirais, seria ele próprio um labirinto a ser decifrado. Como a
própria literatura.
Dessa forma, “O Físico
Prodigioso”, além de travar um diálogo com outros textos, pode ser visto também
como uma nova visão destes mesmos textos, uma reescritura de mitos e histórias
já contadas, como dois espelhos de frente um para o outro, refletindo suas
imagens infinitamente. A mesma imagem representando possibilidades infinitas –
e, afinal, não é disso que trata a Literatura?
“O Físico Prodigioso”
nos descortina um mundo vasto, tão vasto quanto o mundo percorrido pelo
cavaleiro andante nas suas viagens em busca de aventuras. A cada nova leitura
descobrimos algo novo, algum aspecto que antes havia passado despercebido.
Assim como o Físico, que passou por transformações desde que chegou ao castelo
de D. Urraca – descobrindo o amor carnal, descobrindo a dimensão dos seus
poderes, enfim, se descobrindo –, nós também descobrimos novas situações e
novas visões. Ou seja, lemos um texto que, ao mesmo tempo, é o mesmo texto e não
o é. O Físico que chegou ao castelo de D. Urraca não era o mesmo Físico que foi
preso pela Inquisição. Assim como ele, a cada releitura, não somos a mesma
pessoa que leu o livro pela primeira vez.