quinta-feira, 9 de maio de 2013

O labirinto de espelhos em “O Físico Prodigioso”, de Jorge de Sena


A novela ‘O Físico Prodigioso’, do português Jorge de Sena, é uma obra cheia de signos, o que nos permite obter as mais diversas leituras, dependendo do ponto de vista ao qual nos atenhamos. A história se passa em uma espécie de Idade Média, por si só um período repleto de simbologias. Temos aí o mito do Rei Arthur e sua busca pelo Santo Graal; a simbologia do Cristianismo sendo imposta pela Igreja Católica; as bruxas e seus rituais; dragões cuspidores de fogo andando sobre a terra e voando alto nos céus. Utilizando-se desse período para desenvolver sua novela, Jorge de Sena pôde brincar com todos esses símbolos, misturando-os, alterando-os e acrescentando alguns de sua própria invenção.
A Idade Média na qual Sena situa sua obra nos faz lembrar o D. Quixote e sua novela de cavalaria. O próprio Físico é um cavaleiro andante, assim como D. Quixote – e como o próprio Jorge de Sena, longe de sua terra, em um exílio voluntário devido ao regime salazarista que tiranizava Portugal. Os três cavaleiros perseguem cada qual o seu ideal: D. Quixote enfrenta o que, nos seus delírios, pensa serem gigantes; o Físico e Sena procuram o amor e a liberdade. Literariamente Jorge de Sena resgata, mesmo que parcialmente, os heróis que enfrentavam mil batalhas contra dragões, contra exércitos ou mesmo contra moinhos. Assim como D. Quixote montado em seu Rocinante, o Físico chega em seu cavalo para encontrar a sua Dulcineia, na forma de D. Urraca.



O paralelo mais evidente com o Físico é a figura de Jesus Cristo. Porém, podemos rastrear várias outras figuras diante das inúmeras simbologias utilizadas por Jorge de Sena. A figura do Físico parece funcionar como um espelho que emite reflexos diversos, alguns deles distorcidos, que se completam apenas quando conseguimos ver o conjunto. Cada reflexo funciona como uma estrada que, em determinado momento, se bifurca em duas ou mais direções, oferecendo caminhos diversos para o andarilho que nela viaja. Porém, os caminhos acabam por se reunir mais adiante, voltando a ser o mesmo caminho. Porém, o viajante, esse, já não é mais o mesmo.
A dualidade permeia toda a narrativa de ‘O Físico Prodigioso’. Entretanto, fugindo do maniqueísmo que costumamos encontrar na religião, que divide tudo entre Bem e Mal, pureza e pecado etc., e até mesmo de algumas obras literárias, que dividem os personagens em bons e maus – principalmente na literatura infanto-juvenil –, Sena nos apresenta personagens que vivem neste limite, procurando eles mesmos o conhecimento – o autoconhecimento. Os personagens se veem como se estivessem em frente a espelhos – onde a imagem refletida, mesmo sendo outra, é a mesma. Decifrar e compreender estas imagens, unindo-as em uma só, seria a sua meta.
Para fazer sua novela, Sena utilizou-se de várias imagens, de dualismos, de ambiguidades – inclusive semânticas –, explorando todas as facetas que a literatura lhe permite explorar, inclusive alterando a narrativa entre a prosa e a poesia. Em ‘O Físico Prodigioso’, porém, o real e o imaginário não se opõem, não são contrastantes. São imagens distintas que se refletem e se misturam para formar uma única imagem.
É perceptível a influência do surrealismo na obra. Sena utilizou-se de aspectos técnicos peculiares para a fluidez do texto – como é o caso de colunas duplas para narrar eventos simultâneos –, a fragmentação temporal e espacial, além do diálogo intertextual com vários autores, como Camões, e com vários gêneros, como é o caso da utilização de cantigas de amigo, um marco da época medieval, porém compostas pelo próprio Sena. Subverter e superar fronteiras é algo que está presente durante todo o desenrolar da narrativa.
Narrativa esta, por sinal, que não segue os moldes consagrados pelo romance tradicional. Sena brinca com o texto, avança, recua, dá voltas, volta ao mesmo ponto. Por sinal, o experimentalismo narrativo da novela nos é informado pelo próprio Jorge de Sena na introdução à novela que consta da edição brasileira de 2009. Sena nos diz que “o experimentalismo narrativo, jogando com o espaço, o tempo, a repetição variada do texto, etc., é uma das bases essenciais desta novela” (p. 20). Quanto à narração, podemos encontrar três tipos distintos que demonstram esse jogo proposto por Sena: a narração paralela, a narração espiral e o mise em abyme.
A narração paralela é auxiliada pela própria diagramação do texto. Sena utiliza-se da abertura de colunas que narram, simultaneamente, histórias – ou possibilidades – que ocorrem ao mesmo tempo e, às vezes, no mesmo espaço. A princípio, podemos considerar que uma destas histórias é real e que a outra se passa em um mundo onírico, apenas uma fantasia vivida pelo Físico. A utilização do itálico em uma destas colunas, diferenciando-a da outra coluna e do texto “normal”, reforçaria esta ideia. Contudo, devido à capacidade do Físico de transitar em diferentes espaços/tempos, devemos considerar a possibilidade de que as duas situações sejam reais, que tenham acontecido ou estejam acontecendo, possibilidades em diferentes realidades. Na verdade, o que julgamos ser sonho pode ser real, e o que julgamos real pode ser sonho.
O primeiro caso de narração paralela ocorre já no primeiro capítulo, quando o Físico encontra-se tomando sol no vale próximo ao castelo de D. Urraca e aparecem as treês damas do castelo. Na coluna da esquerda é narrada a aparição das damas; na coluna da direita, elas são descritas como se fossem deusas (ps. 30-31). Vale ressaltar a dualidade que ocorre entre esses dois episódios: enquanto, na primeira coluna, as damas são descritas de um modo casto e ficam surpresas e ligeiramente envergonhadas ao ver o Físico, na segunda coluna as deusas transbordam sensualidade. Elas vêm nuas, cabelos soltos, seios balançando. A tensão entre o pudor e o erótico é uma das características que permeia toda a obra.
O segundo caso ocorre quando D. Urraca narra ao Físico a situação que a levou a casar-se com D. Gundisalvo Matamoros. Novamente temos, nesta narração paralela, a tensão entre o casto e o erótico. Enquanto na coluna da esquerda D. Urraca narra uma relação casta com D. Gundisalvo, quase um relacionamento paternal, a coluna da esquerda está repleta de elementos eróticos, inclusive homossexualidade masculina e feminina (os. 72-75). As duas narrações são reflexos distintos de uma mesma situação.
O terceiro caso ocorre no capítulo XII, no final da novela. Narra o momento em que dois bandos distintos chegam simultaneamente a um castelo e a uma cidade, respectivamente. A narrativa refere-se a duas situações que ocorrem ao mesmo tempo, porém em espaços diferentes. Estes espaços, contudo, apresentam algumas similaridades, tais como um espaço vazio (um pátio, no castelo; uma praça, na cidade) e escombros. Esta narração paralela, contudo, não termina com o fim das colunas. Ela continua com o texto regular, com a alternância das duas narrativas, até que uma cantiga junta as duas.
Além disso, outro exemplo de narração paralela, porém de forma indireta, ocorre no capítulo II (os. 45-46), quando as três damas propõem várias histórias sobre a origem do Físico e ele não nega nenhuma das versões. Ao contrário, aceita a todas como verdadeiras quando afirma que “porque, tanto quanto sabia, elas estavam recordando sua própria vida. Tudo aquilo era verdade assim” (p. 46).
Longe de se contradizerem ou repelir-se, as histórias complementam-se, como se fossem reflexos em um espelho. Apenas reunindo-se as duas imagens é que teríamos uma imagem completa e complexa da realidade que elas representam.
A narração espiral consiste em repetir certos fragmentos da narrativa sem que estes fragmentos, de fato, se repitam. Em alguns situações observamos que o Físico volta no tempo e no espaço, nos levando de volta a momentos já acontecidos. Entretanto, o que observar é que, nesses casos, jamais os fatos narrados acontecem da mesma maneira que tinham ocorrido antes. Sempre há algo de diferente, quer seja na ação, quer seja no aspecto físico do local, ou ambos. O próprio Físico afirma que “nunca sai certo o momento a que se volta... Nunca... (p. 90).
Um dos exemplos disso seria quando o Físico tem o primeiro encontro sexual com o Demônio, no capítulo I. Nesse momento, o Físico “sofria aquilo como vexame inapelável que não o excitava, e nem sequer lhe dava horror ou repugnância (p. 27). Já no capítulo VI, após voltar no tempo, a situação modificou-se, como fica provado na seguinte passagem: “entregou-se ao Demônio, que fez dele o que quis [...] Quando aquilo acabou, levantou-se, sacudiu-se, passou as mãos pelo corpo sujo, e sentiu a volúpia de estar sujo assim” (p. 89).
O mesmo se dá com o uso de certas palavras, como tronco. Pode-se entendê-la tanto como sendo o tronco de uma árvore quanto sendo o tronco humano, refletindo uma mistura entre o elemento humano e a natureza. Isto nos leva ao ciclo da vida.
O mise en abyme, segundo o Dicionário de Narratologia, seria “a própria narrativa ou um dos seus aspectos significativos, como se no discurso se projectasse ‘em profundidade’ uma representação reduzida, ligeiramente alterada ou figurada da história em curso ou do seu desfecho”. Isto pode ser observado no capítulo I, quando o Físico está descansando no vale e as donzelas aproximam-se, cantando uma canção (os. 32-34). Esta canção funciona como uma micro-história embutida na novela, resumindo-a e, num deslocamento temporal, antecipando o seu desfecho. Estas duas histórias, interpondo-se e interpenetrando-se, narram a mesma coisa. Novamente temos, aí, um jogo de espelhos onde a canção representa um reflexo da novela. Da mesma forma que podemos observar os dois reflexos separadamente, a completude apenas se dá na junção de ambos.
Ainda em relação a essa duplicidade, a esse jogo de espelhos, também temos o cenário utilizado para a novela. Simbolicamente, a Idade Média – não tendo sido especificado o ano ou mesmo o século – seria uma transposição do período salazarista do século XX. O próprio Jorge de Sena nos dá uma pista sobre isto quando nos diz que “esta época, dando-me uma distância pseudo-histórica, permitia-me uma liberdade da imaginação em que o fantástico, com todas as implicações eróticas e revolucionárias como eu sentia ferver em mim na pessoa do Físico, podia ser usado para tudo” (p. 20).
A Idade Média representou, na história da humanidade, um período que ficou marcado pela opressão aplicada tanto pela nobreza quanto pela Igreja, esta se utilizando da temida instituição chamada de Santo Ofício, fato que vemos narrado na novela, quando o Físico, denunciado à Inquisição, é preso e torturado. No Portugal do período salazarista também temos a opressão a todos aqueles que se opunham ao regime, com prisões, torturas e mortes. Assim, apesar da distância espaço-temporal, temos aí uma grande similaridade entre os dois períodos, dois reflexos que se completam e se ajustam para contar uma história.
Ainda no campo do simbolismo, podemos associar a figura do Físico com a de outra figura mítica de Portugal, que é D. Sebastião. Miticamente, D. Sebastião é uma figura que, após ter desaparecido na batalha de Alcácer Quibir, ressurgirá para trazer Portugal de volta à sua glória. O Físico, o único capaz de curar D. Urraca de uma doença que a acomete há muito tempo, seria D. Sebastião, o único que poderia ‘curar’ Portugal, representado por D. Urraca, da ‘doença’ que o acometia há séculos – a submissão aos interesses e poderes estrangeiros, em contraste com a glória do período das grandes navegações –, bem como de uma doença mais recente – a opressão do regime salazarista.
Ou seja, teríamos aqui um perfeito jogo de espelhos, onde o espelho – e, por extensão, a própria literatura – reflete a imagem do mundo real, um reflexo deformado, mas ainda assim um reflexo.
A figura do Demônio, nesse caso, seria ainda mais emblemática. Ele não é o Demônio estigmatizado pela Igreja Católica como um ser votado exclusivamente a fazer o mal – e, contraditoriamente à sua função, castigando aqueles que praticam o mal. Ele, por meio de um pacto que fez com a madrinha do Físico, concede-lhe poderes em troca de favores sexuais, um elemento erótico que sugere um ato de perversão, segundo a época em que a história se passa, que é o homossexualismo. Além disso, o diabo está associado com a oposição ao ethos dominante, à rebeldia. O Físico Prodigioso é um “símbolo da liberdade e do amor” (p. 17), segundo o próprio Sena. Além disso, o mesmo Sena afirmou que “O Físico Prodigioso” é a sua obra mais autobiográfica. Nesse caso, o próprio Demônio seria um alter-ego de Sena, ambos não querendo nada do Físico, apenas que ele “viva, que ele vá pelo mundo com o seu poder, e que eu assista à sua eternidade” (p. 113). O Físico, assim como Sena, é um andarilho, um peregrinador. O Físico, o Demônio e o próprio Sena seriam os três o mesmo reflexo, ou reflexos de uma mesma coisa. Marcelo Pacheco, em uma tese sobre “O Físico Prodigioso”, traça um paralelo entre o conto “A Biblioteca de Babel” e o romance “O nome da rosa”, onde o mosteiro no qual se passa a história possui uma biblioteca no fundo da qual há um espelho, o que ocorre em “A Biblioteca de Babel”. Em “O Físico Prodigioso”, não encontramos uma biblioteca. Contudo, pelas várias influências que a novela apresenta, por sua intertextualidade, ela própria seria uma biblioteca. Jorge de Sena confessa que baseou sua novela em dois trechos retirados de “O Orto do Esposo”, um livro de exemplos do século XV; além dele, temos várias referências a passagens bíblicas – a própria Bíblia sendo vista como uma coleção de textos, uma minibiblioteca –, que vão de Adão e o Éden, retratado no Gênesis, até Jesus, retratado no Novo Testamento, e com quem o Físico tem paralelos evidentes; as novelas de cavalaria, principalmente com “D. Quixote”, de Cervantes – o Físico é alguém extremamente idealista, visto que não utiliza seus poderes para adquirir riqueza pessoal, assim como o Quixote – e, também, Jesus -, que não luta por riquezas materiais; “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde – quando o Físico envelhece, os monges da Inquisição passam a ter o seu rosto jovem; “O Fausto”, de Goethe; o mito de Narciso; as cantigas de amigo do trovadorismo português; “A máquina do tempo”, de H. G. Wells – assim como o Físico, quando o personagem consegue retornar ao passado, as situações desenrolam-se de maneira diferente, embora, em todas elas, sua noiva acabe morta. E, por que não dizer, o mito de Teseu e o Minotauro. “O Físico Prodigioso”, com suas voltas e retornos e espirais, seria ele próprio um labirinto a ser decifrado. Como a própria literatura.
Dessa forma, “O Físico Prodigioso”, além de travar um diálogo com outros textos, pode ser visto também como uma nova visão destes mesmos textos, uma reescritura de mitos e histórias já contadas, como dois espelhos de frente um para o outro, refletindo suas imagens infinitamente. A mesma imagem representando possibilidades infinitas – e, afinal, não é disso que trata a Literatura?
“O Físico Prodigioso” nos descortina um mundo vasto, tão vasto quanto o mundo percorrido pelo cavaleiro andante nas suas viagens em busca de aventuras. A cada nova leitura descobrimos algo novo, algum aspecto que antes havia passado despercebido. Assim como o Físico, que passou por transformações desde que chegou ao castelo de D. Urraca – descobrindo o amor carnal, descobrindo a dimensão dos seus poderes, enfim, se descobrindo –, nós também descobrimos novas situações e novas visões. Ou seja, lemos um texto que, ao mesmo tempo, é o mesmo texto e não o é. O Físico que chegou ao castelo de D. Urraca não era o mesmo Físico que foi preso pela Inquisição. Assim como ele, a cada releitura, não somos a mesma pessoa que leu o livro pela primeira vez. 

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