quinta-feira, 12 de abril de 2012

Ó – onde a matéria encontra a linguagem

O livro “Ó”, de Nuno Ramos, conquistou o 1° lugar do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2009. Por si só esse fato já chamaria atenção para a obra cujo autor já é reconhecido como artista plástico e que vem buscando espaço também no campo das letras – antes de “Ó” ele já havia publicado os livros Cujo (1993), O pão do corvo (2001) e Ensaio Geral (2007). Porém, além do prêmio, o que chama atenção no livro é a originalidade dos textos que o compõem.
“Ó” é um livro que frustra aqueles que gostam de catalogar, classificar e ordenar as coisas dentro de categorias, sub-categorias e escolas literárias. Embora, a título de catalogação, tenha sido classificado como sendo um livro de contos, “Ó” parece ser isto e muito mais. Poesia em prosa? Crônicas? Ensaios? Sim e não. “Ó” parece ser tudo isso ao mesmo tempo em que parece não ser nada disso. O livro é um conjunto de reflexões sobre vários temas. Ou, conforme disse o próprio autor em uma entrevista, “Ó” seria um conjunto de “narrativas entre a poesia e o pensamento”.
Ao se começar a ler os textos tem-se a impressão de que estamos diante de contos em sua estrutura tradicional. Alguma coisa situada entre os textos de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu. Temos o que parece ser um narrador em primeira pessoa narrando uma situação prosaica – situação presente nos contos de Clarice. “Manchas na pele, linguagem”, o primeiro texto do livro, começa assim. À medida que se avança na leitura, contudo, os textos começam a dar a impressão de que vão enveredar pelo caminho da crônica. O segundo texto, “Túmulos”, começa nos dando a impressão de que será uma crônica e termina nos deixando um gostinho de ensaio. Começamos o terceiro texto, “Tocá-la, engordar, pássaros mortos”, fazendo ainda uma tentativa de classificar os textos dentro de um formato pré-estabelecido, familiar. Então, chegamos ao quarto texto, o primeiro “Ó”, e aí começamos a deixar de lado qualquer tentativa de classificação. Nos damos conta de que estamos diante de algo novo que, com sua linguagem exuberante, como se fosse um rio caudaloso, resiste a ser encarcerado dentro de quaisquer fronteiras que o limite.
O livro é marcado por uma inquietação do autor em encontrar... o quê? Uma nova possibilidade de manusear a linguagem assim como ele faz com suas obras de artista plástico? A metafísica das coisas? O corpo como elemento espacial e como possibilidade de linguagem?
Lendo “Ó”, adquire-se mais perguntas do que respostas. E, talvez, seja exatamente essa a intenção do autor: nos levar a, junto com ele, questionar o sentido das coisas – da própria matéria, da própria linguagem. Porque, longe de nos dar respostas, o livro nos abre um leque de possibilidades, uma multiplicidade de sentidos.
Em “Ó”, o corpo humano é um elemento recorrente. Exemplos disso são os textos ‘Manchas na pele, linguagem’, ‘Túmulos’, ‘Tocá-la, engordar, pássaros mortos’, ‘Recobrimento, lama-mãe, urgência e repetição, cachorros sonham?’, ‘Esquecer os sonhos, ovas’ e ‘No espelho’. Talvez em função de seu trabalho como artista plástico, os textos de “Ó” procurem uma conexão com a matéria, que nos textos tem um papel predominante. Matéria que se expande, se contrai, experimenta, sente.
A morte – real ou apenas pressentida – é outro elemento que aparece em vários textos de “Ó”: ‘Túmulos’, ‘Tocá-la, engordar, pássaros mortos’, ‘Manias, na trincheira’, ‘Sinais de um pai sumido, canção’ tocam nesse tema. Segundo o próprio autor afirmou em uma entrevista, “morte é matéria, redução do sopro, do desejo, ao peso, ao inerte. Acho que esse é o primeiro interesse que tenho pelo tema: a passagem entre uma coisa e outra”. Lembrando que o termo ‘passagem’, principalmente para um artista plástico, é uma via de mão-dupla: a matéria inerte ganha vida, ao mesmo tempo em que a matéria viva se torna inerte.
O tema da velhice é outro elemento que aparece em vários textos: ‘Tocá-la, engordar, pássaros mortos’, ‘Manias, na trincheira’, ‘Recobrimento, lama-mãe, urgência e repetição, cachorros sonham?’, ‘Coisas abandonadas, gargalhada, canção da chuva, previsão do tempo, ida à Lua, ida à Marte’, ‘No espelho’. Aliás, esses três temas – corpo, velhice, morte – estão imbricados de uma forma complementar, um não existindo sem o outro.
Podemos encontrar, nos seus textos, algumas referências a escritores tanto da literatura nacional quanto da literatura internacional. A importância do corpo como elemento de apreensão da realidade, incorporando-a, percebendo-a, misturando-se a ela, tem um quê de “A paixão segundo GH”, de Clarice Lispector. Além disso, temos o fato de que as situações que ocorrem nos textos são desencadeadas por fatos banais – como em Clarice –, e que desembocam em uma espécie de revelação. Uma epifania que está presente em todos os textos do livro.
Outra influência parece ser a do escritor americano Philip Roth o qual, nos seus últimos livros, vem tendo a velhice e a morte como temas recorrentes. Roth tem recebido críticas por seus livros apresentarem uma visão sombria – mas realista – da velhice e da proximidade da morte, uma espécie de esquecimento. Nos textos de “Ó” vemos a deterioração do corpo, o aparecimento de manchas, gorduras, secreções. A morte também é vista como esquecimento – como no texto “Túmulos”. Em oposição à deterioração da matéria, do esquecimento, a linguagem surge como uma maneira de perpetuação, o Verbo divino que gera Vida.
Novamente temos aí o artista plástico lidando com os limites da matéria, com a sua finitude. Aliás, essa dualidade artes plásticas/literatura está presente em praticamente todos os textos. “Ó” é um livro que foi sendo modelado aos poucos, sua forma surgindo a cada golpe do cinzel, uma massa bruta a ser lapidada e da qual pode emergir várias possibilidades, várias formas.
O autor, que passou grande parte de sua vida trabalhando com a matéria, tentando encontrar uma linguagem para ela, agora trabalha com a linguagem, tentando encontrar a sua matéria, uma espécie de linguagem da carne ou carne da linguagem.

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