Há muito se discute sobre o fato de a literatura
ser algo totalmente dissociado do mundo chamado ‘real’ ou ser dela uma espécie
de espelho, refletindo o que nela acontece e, não raro, influenciando o que
nela acontece. O fato é que, por viver no mundo ‘real’, o autor não pode
abstrair-se dele completamente e, mesmo que em um nível instintivo,
inconsciente, o que acontece ao seu redor acaba por influenciar a sua escrita. É
o que acontece com o clássico da literatura “O Senhor dos Anéis”, de J. R. R.
Tolkien.
A saga fantástica – e, por que não dizer, a
fantástica saga? – de Tolkien vem embalando leitores do mundo inteiro e gerando
novos autores influenciados por ela. A história de “O Senhor dos Anéis” é uma
narrativa épica, repleta de simbologia e de uma mistura de diversas mitologias,
tais como o mito do Rei Arthur, Beowulf, mitos nórdicos e islandeses, a Bíblia,
além de contar com algumas experiências traumáticas e marcantes vividas pelo
autor. A 1ª Guerra Mundial, da qual Tolkien participou, influenciou na sua
visão das batalhas de “O Senhor dos Anéis”.
Tolkien vinha de uma família católica e foi criado
na zona rural da Inglaterra. Após a morte da mãe, foi criado, juntamente com
seu irmão, por um padre católico. Era, também, amigo de C. S. Lewis, criador da
saga “Crônicas de Nárnia”, o qual era o que atualmente denominamos de evangélicos,
portanto, cristão como Tolkien. Os dois trocaram muitas ideias e,
provavelmente, discutiam sobre religião e mitologia. Dessas discussões, Tolkien
criou a saga de “O Senhor dos Anéis” e Lewis a de “Crônicas de Nárnia”.
Durante a 1ª Guerra Mundial, Tolkien serviu como 2°
Tenente e participou de batalhas no norte da França. Deu baixa no exército após
contrair o que se chamava ‘febre das trincheiras’, uma forma de disenteria ou
tifo. Dedicou-se, posteriormente, à carreira de professor universitário.
Pode-se dizer que a trilogia que compõe “O Senhor
dos Anéis”, na verdade, é uma pentalogia. Dois outros livros podem ser
incluídos para formar a saga que culmina em “O Senhor dos Anéis”: “O
Silmarillion” e “O Hobbit”. O primeiro relata a mitologia, ocorrida milhares
antes da história narrada em “O Senhor dos Anéis”, que explica a formação do
mundo que compõe a Terra Média; o segundo narra histórias que se passam logo
antes dos fatos ocorridos em “O Senhor dos Anéis”. “O Hobbit” poderia muito bem
ser o livro que Bilbo Bolseiro estava escrevendo durante os eventos de “O
Senhor dos Anéis”.
Em relação ao livro propriamente dito, Tolkien fez
um relato minucioso do mundo onde ele ambientou a história. O livro possui
mapas e descrições dos diversos espaços que compõem o que ele chama de Terra
Média. O termo ‘Terra Média’, ao que tudo indica, Tolkien retirou da mitologia
nórdica. De acordo com esta mitologia, o mundo era formado por vários reinos: Jotunheim,
a terra dos Gigantes; Musphelhein, terra dos gigantes do fogo; Alfheim, terra
dos elfos luminosos (Ljósálfar); Svartalfheim, terra dos elfos escuros; e Nidavellir,
as minas dos anões. A principal delas era Asgard, local onde os deuses viviam,
e que só poderia ser alcançada atravessando-se a Ponte de Bifrost, que era um
imenso arco-íris. Havia também o reino de Niflheim, governado pela deusa Hel, e
que era o local habitado pela maioria dos mortos. Entre Asgard e Niflheim
estava Midgard, o mundo dos homens, também conhecido como ‘Terra Média”. No
universo criado por Tolkien, homens, elfos, anões e orcs lutavam pelo controle
de um local que ele denominou “Terra Média”.
Tolkien pode, também, ter misturado este conceito
nórdico com a ideia cristã de Paraíso e Inferno. A Terra Média poderia
significar o estágio intermediário, a Terra onde vivem os Homens. Se o Homem se
elevasse espiritualmente, iria para um nível superior (o Paraíso, para os cristãos;
Asgard, para os nórdicos); caso fracassasse e cedesse ao mal, iria sofrer em um
nível inferior (o Inferno, para os cristãos; Niflheim, para os nórdicos). Os
próprios elfos representariam o que poderiam ser os seres humanos se não fosse
o “pecado original”.
A própria Terra Média combinaria os três elementos
(superior, médio e inferior) em um mesmo local. A terra dos elfos seria um
lugar mais elevado; Mordor, a morada de Sauron, um lugar inferior; a terra dos
homens seria um lugar entre estes dois polos. Por sinal, Mordor apresenta todas
as características descritas como sendo do Inferno cristão. É um lugar desolado,
coberto de cinzas, fogo e enxofre, habitado por criaturas monstruosas e tem
como senhor uma criatura devotada a fazer o Mal.
Quanto mais próximo de Mordor, mais o ambiente se
torna lúgubre e desolado. Um dos locais pelos quais Frodo e Sam, acompanhados
por Gollum, passam, é um lugar sombrio e assustador, chamado de “Pântanos
Mortos”. Neste local, guerreiros que foram mortos em uma batalha esquecida,
travada há muito tempo, jazem nas águas pútridas e miasmáticas do pântano. Essa
parte parece ser uma referência aos soldados mortos na 1ª Guerra Mundial,
experiência vivida por Tolkien, que viu vários companheiros serem mortos e
permanecerem insepultos nos campos alagados do norte da Europa.
Outras mitologias que parecem ter contribuído para
a saga do Tolkien foram as mitologias bretã e islandesa, em algo que as duas
têm em comum e que serviram de inspiração para a criação de algo fundamental na
saga: o Um Anel. No mito do Rei Arthur, existia um anel da invisibilidade. Um
cavaleiro, chamado Owein, após derrotar o Cavaleiro Negro, se vê aprisionado no
Castelo da Fonte até que uma bela jovem, chamada Luned, lhe dá um anel da
invisibilidade, o que lhe possibilita escapar.
Já da mitologia islandesa, Tolkien foi buscar
inspiração na saga de Völsunga escrita, provavelmente, por volta de 1300 d.C.,
onde era narrada a história de um anel que
corrompia aqueles que o usavam.
Além disso, ainda na mitologia bretã, diz-se que o
Rei Arthur reaparecerá em um momento em que a Inglaterra mais precisará dele.
Em “O Senhor dos Anéis”, Aragorn aparece para assumir sua condição de herdeiro do
trono da Terra Média em um momento em que esta corria grande perigo.
O Um Anel, forjado por Sauron na Montanha da
Perdição, era um anel que tinha o poder de corromper todo aquele que o
mantivesse em seu poder. Vários personagens do livro tentaram possuí-lo, e os
que o possuíram não conseguiam se desvencilhar dele por vontade própria. A
guerra travada pelo controle da Terra Média acabou se transformando em uma
guerra pela posse do anel, ou seja, uma guerra pelo poder que o anel possuía.
Para Tolkien, que enfrentou os horrores da 1ª Guerra Mundial, as guerras são
lutas pelo poder, que no livro é representado pelo Um Anel.
Outro personagem inspirado nas mitologias bretã e
nórdica é o mago Gandalf. Na mitologia nórdica, Gandalf encontra paralelo na
figura de Odin, o deus dos deuses escandinavos. Segundo a lenda, Odin era uma
espécie de andarilho e, quando viajava pela Terra, disfarçava-se como um velho
usando um manto cinzento. Gandalf era um velho andarilho que percorria toda a
Terra Média, e era conhecido como Gandalf, o Cinzento. Gandalf também funcionava
como uma espécie de mentor para Aragorn, assim como, no mito do Rei Arthur, o
mago Merlin executava esse papel junto ao jovem Rei. Mas Gandalf também tem
algo de Jesus: sacrificou-se (lutando contra uma besta das profundezas chamada Balrog),
morreu, ressuscitou e reapareceu como Gandalf, o Branco, o que representa sua evolução
espiritual.
E temos ainda o herói da história: Frodo, o
portador do Anel. Aquele que seria responsável por levar o Um Anel e lançá-lo
no fogo da Montanha da Perdição, local onde o anel foi forjado e o único lugar
onde poderia ser destruído.
A primeira curiosidade sobre Frodo vem do
significado do seu nome. Frodo, em norueguês e anglosaxão, significa ‘sábio’.
Além disso, Frodo é uma espécie de herói improvável. Frodo é um hobbit e, como
tal, vive em uma toca em um lugar chamado de o Condado. Ao contrário dos
homens, os hobbits são um povo pacífico, não dados nem a guerras e nem a
aventuras. A exceção parece ser Bilbo Bolseiro que, em uma de suas viagens,
rouba o Um Anel da criatura conhecida como Gollum.
O Condado é uma região campestre, bem parecida com
a zona rural da Inglaterra antes que começasse o processo de industrialização.
Para evitar que a guerra fosse levada até o Condado, já que Sauron e seus
aliados estavam à procura do Um Anel, Frodo aceita participar da sociedade que
irá tentar destruir o anel. Após passar por vários tormentos e perigos em sua
jornada, Frodo consegue chegar até Mordor e leva o Um Anel até a Montanha da
Perdição, com a intenção de destruí-lo. Contudo, o Anel o tenta e Frodo acaba
não resistindo à tentação, passando a desejar o Anel para si. Temos, aqui, mais
um dos conceitos cristãos dentro da mitologia tolkiana. Frodo está em uma terra
árida e vazia, assim como Jesus quando se retirou para o deserto. Ambos foram
tentados: Frodo cedeu ao apelo do Anel; Jesus não cedeu às tentações do
Demônio. Assim como homens e elfos, Frodo não teve a força necessária para
suportar a tentação. Jesus, um ser altamente espiritualizado e superior, teve
seus momentos de fraqueza, como quando estava na cruz, mas não sucumbiu às
tentações do Demônio. A velha questão de que a carne é fraca.
Outro ponto em comum é que Frodo realizou uma
missão que não escolheu, assim como Jesus, que a recebeu de Deus.
Com o fracasso de Frodo em destruir o Anel, quem se
encarrega disso é Gollum. Tolkien fez com que maldade de Gollum salvasse a
Terra Média. Ao tentar recuperar o Anel de Frodo, Gollum cai no rio de lava da
Montanha da Perdição e é destruído junto com o Anel. Fugindo do padrão do herói
trágico, que sempre faz a coisa certa, Frodo não conseguiu destruir o Anel,
falhando em sua missão. Porém, seguindo o maniqueísmo cristão, no final o Bem
triunfa sobre o Mal.
Frodo volta, então, ao Condado. Contudo, ao invés
da bela terra que deixara ao partir, encontra um lugar horrível, com o povo
vivendo em péssimas condições. O local, que antes era um paraíso, está
destruído.
Tolkien transfere para Frodo o sentimento que o
corroia ao ver o que estava acontecendo com a zona rural da Inglaterra, onde
vivera. Fábricas instaladas naquela área estavam trazendo, junto com o
progresso, a poluição, a miséria e a destruição de áreas verdes e de árvores
centenárias. Era uma guerra entre máquinas e a natureza, e as máquinas estavam
vencendo. Esse conceito, inclusive, já havia sido narrado antes.
Tolkien havia criado dois tipos de seres que viviam
na Terra Média: os elfos e os orcs. Os orcs eram elfos que seguiram o caminho
do mal, numa clara alusão a questão do anjo caído, do cristianismo. Enquanto os elfos são criaturas quase divinas,
angelicais, os orcs possuem uma aparência monstruosa, demoníaca. Os elfos são
seres que vivem em estreito contato com a natureza. Já os orcs gostam de
máquinas, de produção (lembrando que os orcs, sob a supervisão de Saruman, o
antigo líder da ordem a qual Gandalf pertencia, ‘produziram’ seres que seriam o
exército de Sauron na batalha pelo controle da Terra Média), de destruição e de
escravizar outros seres (ou até mesmo outros orcs) para trabalharem para eles.
Uma alusão à crescente industrialização e ao capitalismo que permeavam toda a
Inglaterra.
Desiludido, Frodo resolve partir juntamente com os
elfos. Os elfos resolveram partir por perceberem que não pertenciam mais àquela
‘nova era’ que se iniciava. Frodo, vendo a destruição que havia sido feita no
Condado, também não se sentia mais parte daquilo. Assim como Tolkien. Enquanto
Frodo e os elfos partiram em busca de refúgio em novas terras, Tolkien se
refugiava nas terras da ficção.
No início do texto, dissemos que se discute se a
literatura pode ser “algo totalmente dissociado do mundo chamado ‘real’ ou ser
dela uma espécie de espelho, refletindo o que nela acontece e, não raro,
influenciando o que nela acontece”. Os episódios vividos por Tolkien parecem
apontar para o fato de que, mesmo quando cria um universo totalmente novo, o
autor não consegue se desvencilhar do que acontece em seu próprio universo.
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