O conto “Uma
galinha”, de Clarice Lispector, é, aparentemente, um conto simples, até mesmo
infantil. Esta impressão fica mais acentuada ao sabermos que Clarice Lispector
também escreveu histórias infantis – O
mistério do coelhinho pensante, A
mulher que matou os peixes, A vida
íntima de Laura e Quase de verdade.
Porém, esta impressão de simplicidade se esvai frente a uma leitura mais atenta
da história. Ao procedermos assim, observamos que o conto apresenta várias
opções de análise e alguns fatos que são recorrentes tanto nos contos quanto
nos romances ditos ‘para adultos’ de Clarice.
Primeiramente, a
questão da família. Clarice escreveu um livro de contos inteiro sobre este
tema, Laços de família, no qual discute
várias situações envolvendo famílias. No Brasil, por ser um país eminentemente
católico, principalmente na época em que o livro foi publicado – 1960 –, a
família era vista como algo sagrado, remetendo à família de Jesus como sendo um
exemplo. Criticar a instituição família era ir contra a Igreja e também contra
o Estado.
Em segundo lugar,
a presença de uma galinha, figura recorrente nas histórias da escritora. Em
vários dos seus contos e romances, há uma galinha como personagem ou, então,
ovos de galinha. No conto “Amor”, do livro Laços
de Família, por exemplo, a personagem Ana, quando está no bonde, leva
consigo alguns ovos, que serão servidos no jantar; há, também, um conto
intitulado “O ovo e a galinha”.
No conto “Uma
galinha”, a personagem central, como o próprio título diz, é uma galinha, uma
“galinha de domingo” que irá ser servida no almoço. No entanto, quando se
iniciam os preparativos para matar a galinha, esta alça voo e vai empoleirar-se
nos muros e telhados da vizinhança. O pai, vendo o almoço fugir, empenha-se em
persegui-la até que, triunfante, consegue trazer a galinha de volta para casa. Com
a excitação da fuga e a consequente perseguição de que fora alvo, a galinha põe
um ovo. Nesse instante, a filha pede para que “(...) não mate mais a galinha,
ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!”
A partir daí, a
galinha torna-se o centro das atenções, “tornara-se a rainha da casa”. Essa
situação permaneceu durante algum tempo, até que um dia “dia mataram-na,
comeram-na e passaram-se os anos”.
O conto narra a
vida de uma típica família brasileira – mas que poderia representar uma família
de qualquer parte do mundo. Há a figura do pai, da mãe, da filha e da
cozinheira. O papel de cada um está bem delineado e condizente com a realidade
– pelo menos, com a realidade da época em que Clarice Lispector escreveu o
conto. O pai é o provedor, é aquele que tem a responsabilidade de sustentar a
família, provendo todas as suas necessidades, inclusive de alimentação – resquícios
dos tempos das cavernas, no qual os homens tinham a função de proteger e
alimentar o grupo. Quando a galinha foge, é ele quem realiza a tentativa de
captura e é ele quem a traz de volta para casa. Além disso, após a galinha
botar o ovo, é ele quem toma a decisão de não mais matar a galinha, decisão
esta que fica patente nos trechos “O pai afinal decidiu-se com certa
brusquidão” e “Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na
minha vida!” A palavra final, a decisão pelos rumos que a família vai tomar,
cabe à figura paterna. O homem é o ‘cabeça’ do casal, segundo a tradição
bíblica e a Lei então vigente no Brasil, cabendo a ele tomar as decisões
pertinentes à família.
Além disso, se a
galinha é a protagonista da história, o pai faz o papel do antagonista. É ele
quem entra em choque com a galinha; é ele quem vai buscá-la quando ela
empreende sua fuga; é ele quem decide que a galinha não mais será morta para
servir de almoço.
A mãe ocupa um
papel secundário, não merecendo um destaque maior no decorrer do conto. Sua
única ação, quando o pai decide que não mais matarão a galinha e a filha o
apoia, é de indiferença, que pode ser notada pelo trecho “A mãe, cansada, deu
de ombros”.
É interessante a
utilização do adjetivo ‘cansada’. De quê a mãe estaria cansada? O narrador, no
início do conto, nos informa sobre o dia e a hora em que a história se inicia:
“Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da
manhã”. Ou seja, a mãe não tivera ainda tempo para ter um dia estafante, após
trabalhar na limpeza da casa ou algo assim, além de que não fora ela quem
perseguira a galinha após a sua fuga, e sim o marido – este, sim, podendo estar
cansado devido a falta de exercícios físicos. De onde viria esse seu “cansaço”?
Provavelmente, da própria vida de dona de casa, do seu papel de mulher em uma
sociedade machista, que cerceava os direitos da mulher. Da falta de propósito
que permeava sua vida. Assim como na ‘vida real’, no conto a mãe ocupa um papel
secundário, enquanto o marido ocupa um papel de maior destaque, proporcionado
pela perseguição que empreendeu na tentativa de capturar a galinha, bem como na
tomada de decisão quanto ao destino que seria dado à galinha.
A menina também
ocupa um papel secundário no conto, evidenciando a posição secundária que as
crianças exerciam naquele tempo – o tempo da autora, que pode coincidir com o da
história. Ela apenas anuncia o fato de que a galinha pôs um ovo e, depois,
concorda com o pai quando este diz que não mais matarão a galinha. Ou seja, a
criança tinha consciência das coisas que se desenrolavam ao seu redor, mas não
tinham voz ativa para emitir sua própria opinião. Ao perceber que a galinha
havia colocado um ovo, a menina limita-se a pedir para a mãe que “não mate mais
a galinha, ela pôs um ovo”, evidenciando que a decisão sobre este assunto não
cabia a ela, e sim a um adulto. No entanto, a decisão final não coube à mãe, e
sim ao pai, e é ele quem decide não matar mais a galinha.
A cozinheira –
mais um personagem feminino que ocupa um lugar secundário no conto –
praticamente não aparece na história, sendo apenas citada no trecho “o tempo da
cozinheira dar um grito”, por ocasião da fuga da galinha. Além de ser mulher, a
cozinheira ocupa uma posição que, ainda hoje, enfrenta certo preconceito, que é
a de empregada doméstica. Convivendo diariamente com a família – chegando até
mesmo a morar com ela –, mas sem fazer parte dela, a cozinheira ocupa uma
posição de invisibilidade social, vivendo uma vida marginalizada, sendo
lembrada apenas quando seus serviços se fazem necessários – a mesma invisibilidade
social que atinge garis, mendigos e outras parcelas da população que ocupam
postos ou classes sociais consideradas ‘inferiores’, não merecendo um olhar
mais atento por parte daqueles que possuem um pouco mais de recursos econômicos
e/ou possuem uma posição social privilegiada.
Temos, assim, a
galinha como protagonista da história e o pai como antagonista. Os demais
personagens – mãe, filha e cozinheira – ocupam uma posição secundária, para os
quais não é dado um maior destaque.
A galinha é o
único personagem ‘feminino’ que ocupa um destaque na história. A figura da
galinha é usada como uma metáfora para demonstrar o papel da mulher na
sociedade da época. A autora utiliza-se deste personagem para criticar a
maneira como a mulher era vista e tratada, já que o conto foi publicado em 1960,
época em que movimentos feministas começavam a se espalhar pelo mundo.
A maneira como a
galinha/mulher é tratada pode ser vista em trechos como “Não olhava para
ninguém. Ninguém olhava para ela”; “Nunca se adivinharia nela um anseio”. Até
uma certa época, a mulher era tratada como se não tivesse vontade própria.
Vivia sob o domínio do pai, até que um dia casava-se e passava a viver sob o
domínio do marido; ao morrer o marido, o controle passava para o filho mais
velho. A mulher não era olhada como um ser pensante e inteligente – assim como
a galinha, normalmente considerada como sendo estúpida –, apenas como objeto de
admiração por causa de sua beleza e/ou atrativos sexuais.
O mesmo ocorre com
a figura da galinha. Ela não recebia nenhum tipo de atenção – “Ninguém olhava
para ela”; “usando suas duas capacidades: a de apatia e a de sobressalto”. A
galinha só mereceu uma atenção maior em dois momentos do conto: quando alçou
voo, e a família se viu perdendo seu almoço de domingo; e quando pôs um ovo e
despertou na família a ideia da maternidade.
Basicamente, o
mesmo ocorria em relação à mulher. Criada para casar e ter filhos – ou seja, a
mulher era vista apenas como um instrumento para procriação –, a mulher só
merecia destaque quando se casava e, vestida de noiva, tornava-se o centro das
atenções; e quando ficava grávida. A gravidez, por conta de aspectos religiosos
impostos pelo cristianismo, era vista como algo quase sagrado, divino, quando
comparada com a gravidez de Maria, mãe de Jesus.
Ao pôr o ovo, a
galinha despertou nas pessoas o senso da maternidade, tornando-se “a rainha da
casa”. Ao chocar o ovo, criou uma analogia com a gravidez feminina, quando o
embrião ainda se encontra em desenvolvimento para se tornar um ser humano.
Neste momento, todos passaram a se interessar e a se preocupar com a galinha,
fazendo até com que o pai pensasse, com um certo tom de remorso, que “a
obriguei a correr naquele estado!”
A importância da
mulher – e da galinha – residia no fato de que a gravidez era um momento de
importância, conforme se observa em um trecho do conto que diz “nascida que
fora para a maternidade”. Um filho – principalmente se fosse homem – iria
perpetuar o nome da família e cuidar dos negócios do pai. No caso da galinha,
colocar ovos supriria as necessidades de alimentação da família e, caso o ovo
fosse chocado, geraria uma nova galinha que serviria de alimento ou poria mais
ovos para sustentar a família.
Neste conto,
Clarice não se utiliza de um recurso que acompanha grande parte de sua obra: a
epifania. De acordo com definições de Affonso Romano de Sant’Anna, a epifania
seria uma “uma súbita revelação da verdade”, “o relato de uma experiência que a
princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar a força de
uma inusitada revelação” ou, ainda, “a percepção de uma realidade atordoante
quando os objetos mais simples, os gestos mais banais e as situações mais
cotidianas comportam iluminação súbita na consciência dos figurantes...”.
No conto “Amor”
e no romance “A paixão segundo G. H.”, por exemplo, ocorre o fenômeno da
epifania, quando as personagens, movidas por um incidente banal, entram em um
processo de quase ‘revelação’, até que, no final, voltam à sua vida cotidiana.
Ou seja, nas histórias de Clarice, a epifania é um momento efêmero que,
praticamente, não deixa marcas nas personagens, já que elas retornam ao estado
inicial após este momento epifânico.
No conto “Uma
galinha”, a epifania não acontece. O mais próximo que ocorre de uma epifania é
quando a galinha põe o ovo e a filha diz que “Ela quer o nosso bem”. O pai,
também sensibilizado por aquela situação, alega que “nunca mais comerei galinha
na minha vida”, caso a galinha seja morta para servir de almoço. A mãe permanece
apática diante da situação, acatando a decisão do pai sem questionar. Não se
conhece a reação da cozinheira, mas, provavelmente, estaria apenas esperando,
pacientemente, a decisão dos patrões para saber o que deveria fazer – matar a
galinha ou providenciar outra coisa para o almoço.
Assim, em nenhum
dos dois casos – a reação da menina e a do pai – ocorreu realmente uma
epifania, já que não houve uma reflexão sobre a questão. Ambos apenas aceitaram
a situação, movidos mais por um sentimento instintivo e inconsciente do que por
uma reflexão sobre aquele instante. Em nenhum momento os personagens modificam
sua visão de mundo ou chegam, sequer, a pensar sobre ela.
A galinha,
durante toda a história, é descrita como “Estúpida, tímida”, “Inconsciente da
vida que lhe fora entregue” ou “vazia cabeça”. No entanto, o que podemos
observar é que os demais personagens da trama não agem de maneira diferente.
Eles também, a seu modo, levam uma vida estúpida e tímida, e também tinham sua
própria inconsciência da vida que lhes fora entregue. Assim como a galinha, mal
tendo posto o ovo, “parecia uma velha mãe habituada”, movida por um instinto
atávico que a levava a exercer a maternidade sem que precisasse refletir sobre
ela, as pessoas que compunham a família também parecem agir de maneira
inconsciente, deixando-se levar por um instinto que lhes havia sido passado
pelos seus pais e que eles, por sua vez, passariam a seus filhos. A tão
propalada ‘superioridade’ dos homens sobre os animais seria um mito, pois a
maioria das pessoas acabam realizando suas ações mais por instinto do que por
reflexões sobre a situação.
O conto, dessa
forma, serve como um momento de reflexão sobre a Vida e sobre o comportamento
dos seres humanos. Reflexão esta que não parte dos personagens, que em nenhum
momento se põem a pensar sobre o que está ocorrendo naquele instante. Eles
apenas se deixam levar por velhos hábitos que eles mesmos não se dão conta de
onde vieram. Esta reflexão deverá ser feita pelo leitor – se é que este a fará!
Sob este aspecto,
o conto inteiro funciona como uma epifania, com o intuito de, partindo de um fato
banal – a fuga de uma galinha que serviria de almoço e a sua subsequente
maternidade –, nos fazer pensar sobre situações para as quais não damos maior
importância, nos deixando levar ao sabor da corrente, uma massa humana que se
guia pelo instinto, assim como os animais se deixam levar pelo instinto, cada
raça agindo da mesma maneira em qualquer lugar do mundo.
O conto “Uma
galinha” confunde-se, em alguns momentos, com o conceito de fábula e parábola. Fábula
é uma estória que possui como personagens animais, vegetais ou minerais e tem um
objetivo instrutivo. Além disso, a fábula e uma história breve”. Já a parábola
tem, como personagens, homens. Tal como a fábula, a parábola tem sentido
moralista, mas seu sentido não é aparente, utilizando uma linguagem figurada e
com os personagens possuindo um sentido simbólico. No conto “Uma galinha”,
temos um animal como personagem central – afinal, sem a galinha a estória não
aconteceria –, assim como em uma fábula. E, além disso, como em uma parábola, o
sentido do conto não é aparente. A galinha, assim como os demais personagens do
conto, na verdade funcionam como estereótipos para exemplificar pessoas e
situações reais. A família do conto representa um padrão do que seria uma
família comum – no Brasil e em várias partes do mundo. A galinha funciona como
uma metáfora para discutir a situação da mulher em uma sociedade machista e
paternalista. Neste conto, os personagens funcionam mais como símbolos do que
como pessoas reais vivenciando situações possíveis.
Diferentemente
da fábula, que tem caráter instrutivo, e da parábola, cujo objetivo é
moralizante, o conto de Clarice não procura instruir nem criar conceitos
moralizantes – ao contrário, a exemplo de Derrida, ela parece procurar mais
‘desconstruir’ para que, no meio dos destroços, se possa encontrar a base de um
novo conceito a ser discutido e pensado.
Antenada com
fatos que aconteciam no mundo – Clarice foi casada com o diplomata Maury Gurgel
Valente e chegou a viver quinze anos fora do Brasil, morando em cidades como
Nápoles, Berna, Torquay e Washington –, Clarice presenciou movimentos
culturais, políticos e econômicos que aconteciam na Europa e América do Norte, relacionando
os novos pensamentos e comportamentos com a atmosfera que ainda permeava o
pensamento brasileiro. Em seus textos, Clarice põe em discussão vários valores
– família, situação da mulher etc. –, procurando fazer com que o brasileiro
também acompanhasse esse momento de mudança e de comportamento que começava –
ou continuava – a se espalhar pelo mundo.
Desta forma,
podemos observar que, apesar da aparente simplicidade citada no início deste
texto, o conto “Uma galinha”, bem como o restante da obra de Clarice Lispector,
suscita reflexões sobre os mais variados temas: família, individualidade,
maternidade, condições sociais e muitos outros.
A obra de
Clarice Lispector merece ser lida e analisada pela profundidade com que trata
de temas que, mesmo atualmente, ainda são debatidos sem que se consiga chegar a
uma decisão satisfatória sobre o assunto. Nas suas histórias, Clarice nos
mostra que das coisas mais simples podemos extrair grandes ensinamentos. Cada
um de nós pode alcançar sua própria epifania.