sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Temos liberdade ou apenas concessões?



Desde priscas eras temos ouvido as pessoas clamarem por ‘liberdade’. E muito já se fez em nome dela: guerras, assassinatos, revoluções. A ‘liberdade’ é colocada como antônimo de autoritarismo, de ditadura. Na época do governo militar, no Brasil, muitas pessoas desapareceram nos porões da ditadura lutando pela liberdade; nos Estados Unidos, o povo americano lutou contra os colonizadores ingleses pela sua liberdade; a Revolução Francesa depôs a monarquia para acabar com sua opressão e obter liberdade; o Aliados enfrentaram a Alemanha de Hitler para evitar o nazismo que oprimiria a liberdade das nações. E, afinal, conseguimos esta tão sonhada e propalada liberdade?
Liberdade, na verdade, é apenas um conceito abstrato e vago. Mesmo nas chamadas ‘democracias’ não existe, verdadeiramente, liberdade. No Brasil, por exemplo, onde supostamente vivemos uma democracia, vemos que não possuímos, de fato, liberdade: somos obrigados a votar; somos obrigados a nos alistar nas Forças Armadas; somos obrigados a lutar pelo país em caso de guerra; somos obrigados a pagar impostos; e por aí vai. Ou seja, somos obrigados a fazer uma porção de coisas que não queremos, e deixar de fazer umas tantas outras que queremos. Na maior parte dos casos, somos obrigados a agir contra a nossa vontade.
Quando votamos, não votamos nos candidatos que achamos serem os melhores para determinados cargos, mas votamos nos candidatos que os Partidos nos oferecem. Não escolhemos quem queremos; escolhemos dentre as opções que nos são oferecidas.
Temos Leis que nos dizem o que podemos ou não podemos fazer. Mantemos a nossa liberdade quando obedecemos a essas leis; quem desobedece, fica privado de sua liberdade.     
Moralmente, existe uma ‘lei’ que nos diz que o limite da nossa liberdade vai até onde começa a liberdade de outra pessoa. Eu só posso fazer algo que não incomode outra pessoa, caso contrário não devo fazê-lo. Posso exercer minha liberdade dentro de determinados limites. Nossa liberdade é cerceada e vigiada – Big Brother em ação (estou falando do famoso livro ‘1984’, de George Orwell, e não daquela imbecilidade exibida pela Rede Globo).
Em tempos idos, permitia-se a realização de duelos. Se uma pessoa matasse outra em um duelo não seria presa por assassinato, já que a vítima havia concordado em participar do referido duelo. Atualmente, duelos são proibidos. Se uma pessoa matar outra em duelo, será presa por assassinato. Mesmo que as duas partes concordem em duelar, o duelo é considerado ilegal.
Ou seja: nossa liberdade é determinada pela sociedade e por suas ideias de momento. A sociedade nos prende a determinadas convenções que devemos seguir, querendo ou não. Daí podemos deduzir que não temos, de fato, liberdade. O que temos são concessões que a sociedade nos dá, permitindo que façamos algo ou não.             
Na verdade, esse tempo todo temos lutado por uma utopia: a utopia da Liberdade! Temos matado e morrido por nada. O povo – a grande massa de gente – foi feita para seguir, e não para ser seguida – daí o grande número de igrejas e religiões que nascem todos os dias; daí o número de ditaduras que pululam pelo mundo. A ‘massa’ faz não o que quer, mas o que a mandam fazer. A televisão nos diz o que comprar, o que vestir, o que assistir e o que fazer, enquanto nos passa a falsa impressão de liberdade, de que fazemos o que queremos.
Mesmo em governos ditos ‘democráticos’, essa democracia é pura ilusão. O governo do povo, na verdade, é o governo de uma minoria que recebe o aval de uma maioria para oprimir esta maioria. E, geralmente, essa minoria age em proveito próprio, sem defender os interesses da maioria que os colocou lá.
O que devemos fazer, então, para alcançarmos a Liberdade?
Não sei. Não escrevi este texto com a pretensão de fornecer respostas, mas de fazer perguntas, de fazer com que as pessoas pensem sobre a questão.
Pelo menos, aqui, cada um terá a liberdade de encontrar suas próprias respostas.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O papel da mulher na educação dos filhos


Na maioria dos países, os cargos de liderança são exercidos por homens. As mulheres reclamam que vivemos em uma sociedade patriarcal e que elas são manietadas e sofrem preconceitos por parte dos homens, opressores. Porém, se refletirmos sobre o assunto, chegaremos à conclusão de que a culpa de ainda termos uma sociedade machista e patriarcal é culpa das mulheres, já que são elas que, verdadeiramente, nos governam.
Quando pequenos, ficamos aos cuidados da mãe, que nos alimenta, nos dá banho, nos põe pra dormir. Mesmo quando estamos um pouco maiores, passamos mais tempo com nossas mães, enquanto nossos pais estão no trabalho ou, no seu tempo livre, estão bebendo cerveja com os amigos. 
Na escola, do 1° ao 5° ano, a maioria dos professores são mulheres – as “tias”, como nos ensinam a chamá-las. Assim como nossas mães e avós, são elas que nos educam nos primeiros anos do nosso aprendizado, quando estamos aguçando a nossa curiosidade para novas descobertas. 
Quando os filhos são adolescentes, já demonstrando sinais incipientes de independência, o pai, em muitos casos, se aproxima mais das filhas, com quem conversa e troca ideias. E, sem perceber, acaba se deixando levar pelo jeito carinhoso e meigo da ‘filhinha’. Geralmente, a filha consegue manipulá-lo a deixá-la fazer quase tudo que ela deseja. 
Os nossos líderes são forjados no seu caráter e na sua integridade pelas suas mães. Poderíamos dizer que são as mulheres que formam os nossos líderes, embora muitos deles acabem se desviando dos ensinamentos que lhes foram passados. Outros se desviam por não terem recebido de suas mães – e também de seus pais – ensinamentos adequados ou suficientes. 
A mulher, mesmo nos dias atuais, ainda mantém a sagrada tarefa de educar os filhos nas suas fases iniciais. Pena que muitas delas (a maioria, infelizmente) não tenham consciência da importância e responsabilidade que lhes cabe. Acham que educar o filho é apenas banhá-lo, alimentá-lo, vesti-lo, dar-lhe uma boa escola. Não percebem que cabe a elas moldar o caráter dos filhos, formando os homens que eles serão no futuro. Valores morais e educação não se adquirem nas escolas nem nas igrejas. Estas instituições apenas reforçam ou expandem o que foi aprendido em casa. O lar é a escola primeira, que nos prepara para a vida ou, pelo menos, nos fornece subsídios para que possamos nos ajustar e nos ajeitar da melhor maneira possível. 
A escola não nos educa, apenas nos ensina. Porém, nos dias corridos de hoje, muitos pais deixam a cargo da escola e da televisão (que nos mostra coisas boas e más, indiscriminadamente) a educação dos filhos, sem se darem conta – ou, o que é pior, recusando-se a se darem conta – de que as bases são lançadas no lar. Sem uma base sólida não podemos construir o edifício da educação. 
Muitos pais dizem não ter tempo para conversar com os filhos, para simplesmente estar com eles. Contudo, esses mesmos pais arranjam tempo para jogar futebol, tomar um chopp com os amigos, para ir ao cabeleireiro ou ficar horas ao telefone fofocando da vida alheia com uma amiga. Há falta de tempo, tempo mal administrado ou simplesmente desinteresse? 
Quando os pais, principalmente as mães, que ainda são as reais administradoras do lar, se conscientizarem de que depende deles a aquisição de valores morais por parte dos filhos, passando-lhes estes valores, principalmente, por meio de exemplos – uma conduta correta, um lar equilibrado e harmonioso – teremos, no futuro, cidadãos comuns e líderes conscientes e honestos, preocupados com o desenvolvimento justo da sociedade, com a diminuição das injustiças sociais, enfim, preocupados em realmente erigir uma sociedade justa por meio de atitudes realmente eficazes, ao invés das palavras vazias que comumente ouvimos dos nossos políticos.
Os pais são responsáveis em transformar esse futuro em realidade, passando para os filhos valores e ideais elevados, iniciando-os no caminho da justiça social. 
Porém, lembremo-nos de que não podemos dar aos outros aquilo que não temos nem para nós mesmos.           

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O país do pão e do circo


Observando os últimos dias, quando o Corinthians estava em Yokohama, no Japão, para disputar o Mundial da FIFA, pude observar certas situações, e lembrar de outras, que parecem só ocorrer no Brasil.
Uma das coisas que já nos habituamos a ouvir dos comentaristas, quando um time brasileiro disputa um campeonato internacional (Libertadores, Sulamericana ou Mundial de Clubes), é que aquele time “é o Brasil na Libertadores”, por exemplo. São levantadas bandeiras de um falso ‘patriotismo’. Torcedores de outros times aderem a esse bordão e passam a torcer por equipes que, normalmente, são rivais. Outro fato que causa discussões é o ranking da FIFA. Quando o Brasil perde posições – e, principalmente, quando é ultrapassado pela Argentina –, causa uma espécie de indignação entre os brasileiros, que não aceitam que o Brasil deixe de ser um dos três primeiros times no ranking, no mínimo.
Porém, algumas notícias que envolvem situações mais graves e alarmantes acabam passando despercebidas. Como é o caso de um ranking sobre educação, recentemente divulgado. Dentre os quarenta países que fizeram parte da análise, o Brasil ocupou o trigésimo nono lugar! É isso mesmo: posição número 39, entre 40 países! Só ficamos à frente da Indonésia! Qual foi o resultado disso? Nenhum.
Não vi nenhum comentário indignado no Facebook ou no Twitter, embora tenhamos ficado atrás da Argentina, por exemplo.
Temos vários recordes negativos, mas ninguém parece se importar com isso. Somos um dos primeiros países em acidentes de trânsito; estamos no topo em violência e corrupção. Ocupamos as últimas posições quando o assunto é educação. Mas, tudo bem. Desde que sejamos um dos primeiros no futebol. Cair no ranking da FIFA é que não pode!
É por isso que, atualmente, temos esta educação de fachada. O governo brasileiro divulga números baixíssimos de analfabetos, mas vemos alunos do Ensino Médio que não leem nem escrevem com um mínimo de correção; a educação é elogiada pelos nossos governantes, mas o que vemos são vários professores despreparados e que não conhecem nem mesmo as matérias que lecionam; vemos garis ganhando quase o mesmo – e, às vezes, até mais – que professores.
Enquanto o governo faz cortes nas verbas voltadas para a educação, liberam milhões de reais para a construção de estádios para a Copa do Mundo – embora o então presidente Lula, aquele que nunca sabia de nada, tenha afirmado categoricamente que os estádios seriam construídos com dinheiro privado, com o governo arcando apenas com as obras de infraestrutura.   
Atualmente, a única preocupação do povo brasileiro é com a Copa do Mundo que será realizada no Brasil. A maioria da população está preocupada com o fato de o Brasil ainda não ter um time pronto, enquanto seleções como Espanha e Alemanha têm uma base desde a última Copa. O povo anda preocupado em não repetir o fiasco de 1950, quando fomos derrotados pelo Uruguai e perdemos o título em pleno Maracanã. Porém, não vejo ninguém preocupado – nem mesmo os nossos governantes – com o fato de perdermos para o mesmo Uruguai, para o Chile e para a Argentina em termos de educação. Lembrando: só ganhamos da Indonésia, dentre os 40 países analisados.
E por que o povo brasileiro só se preocupa com o futebol, deixando de lado questões mais relevantes? Por causa dessa mesma educação que nos deixa em trigésimo nono lugar, dentre 40 países!
A educação que recebemos – e que nós, como professores, repassamos! – não nos permite analisar questões relevantes. O brasileiro vive ainda como os romanos da época dos Césares: é só dar-lhes pão e circo – leia-se: bolsa família e futebol – e ele fica calado e contente. Passando fome, desempregado, morrendo de várias doenças por falta de infraestrutura e vivendo na ignorância.
Mas com orgulho de ser brasileiro, o país da próxima Copa do Mundo!       

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Galinhas, família e epifania: reflexões sobre Clarice Lispector



O conto “Uma galinha”, de Clarice Lispector, é, aparentemente, um conto simples, até mesmo infantil. Esta impressão fica mais acentuada ao sabermos que Clarice Lispector também escreveu histórias infantis – O mistério do coelhinho pensante, A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura e Quase de verdade. Porém, esta impressão de simplicidade se esvai frente a uma leitura mais atenta da história. Ao procedermos assim, observamos que o conto apresenta várias opções de análise e alguns fatos que são recorrentes tanto nos contos quanto nos romances ditos ‘para adultos’ de Clarice.
Primeiramente, a questão da família. Clarice escreveu um livro de contos inteiro sobre este tema, Laços de família, no qual discute várias situações envolvendo famílias. No Brasil, por ser um país eminentemente católico, principalmente na época em que o livro foi publicado – 1960 –, a família era vista como algo sagrado, remetendo à família de Jesus como sendo um exemplo. Criticar a instituição família era ir contra a Igreja e também contra o Estado.
Em segundo lugar, a presença de uma galinha, figura recorrente nas histórias da escritora. Em vários dos seus contos e romances, há uma galinha como personagem ou, então, ovos de galinha. No conto “Amor”, do livro Laços de Família, por exemplo, a personagem Ana, quando está no bonde, leva consigo alguns ovos, que serão servidos no jantar; há, também, um conto intitulado “O ovo e a galinha”.
No conto “Uma galinha”, a personagem central, como o próprio título diz, é uma galinha, uma “galinha de domingo” que irá ser servida no almoço. No entanto, quando se iniciam os preparativos para matar a galinha, esta alça voo e vai empoleirar-se nos muros e telhados da vizinhança. O pai, vendo o almoço fugir, empenha-se em persegui-la até que, triunfante, consegue trazer a galinha de volta para casa. Com a excitação da fuga e a consequente perseguição de que fora alvo, a galinha põe um ovo. Nesse instante, a filha pede para que “(...) não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!”
A partir daí, a galinha torna-se o centro das atenções, “tornara-se a rainha da casa”. Essa situação permaneceu durante algum tempo, até que um dia “dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos”.
O conto narra a vida de uma típica família brasileira – mas que poderia representar uma família de qualquer parte do mundo. Há a figura do pai, da mãe, da filha e da cozinheira. O papel de cada um está bem delineado e condizente com a realidade – pelo menos, com a realidade da época em que Clarice Lispector escreveu o conto. O pai é o provedor, é aquele que tem a responsabilidade de sustentar a família, provendo todas as suas necessidades, inclusive de alimentação – resquícios dos tempos das cavernas, no qual os homens tinham a função de proteger e alimentar o grupo. Quando a galinha foge, é ele quem realiza a tentativa de captura e é ele quem a traz de volta para casa. Além disso, após a galinha botar o ovo, é ele quem toma a decisão de não mais matar a galinha, decisão esta que fica patente nos trechos “O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão” e “Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!” A palavra final, a decisão pelos rumos que a família vai tomar, cabe à figura paterna. O homem é o ‘cabeça’ do casal, segundo a tradição bíblica e a Lei então vigente no Brasil, cabendo a ele tomar as decisões pertinentes à família.
Além disso, se a galinha é a protagonista da história, o pai faz o papel do antagonista. É ele quem entra em choque com a galinha; é ele quem vai buscá-la quando ela empreende sua fuga; é ele quem decide que a galinha não mais será morta para servir de almoço.
A mãe ocupa um papel secundário, não merecendo um destaque maior no decorrer do conto. Sua única ação, quando o pai decide que não mais matarão a galinha e a filha o apoia, é de indiferença, que pode ser notada pelo trecho “A mãe, cansada, deu de ombros”.
É interessante a utilização do adjetivo ‘cansada’. De quê a mãe estaria cansada? O narrador, no início do conto, nos informa sobre o dia e a hora em que a história se inicia: “Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã”. Ou seja, a mãe não tivera ainda tempo para ter um dia estafante, após trabalhar na limpeza da casa ou algo assim, além de que não fora ela quem perseguira a galinha após a sua fuga, e sim o marido – este, sim, podendo estar cansado devido a falta de exercícios físicos. De onde viria esse seu “cansaço”? Provavelmente, da própria vida de dona de casa, do seu papel de mulher em uma sociedade machista, que cerceava os direitos da mulher. Da falta de propósito que permeava sua vida. Assim como na ‘vida real’, no conto a mãe ocupa um papel secundário, enquanto o marido ocupa um papel de maior destaque, proporcionado pela perseguição que empreendeu na tentativa de capturar a galinha, bem como na tomada de decisão quanto ao destino que seria dado à galinha.
A menina também ocupa um papel secundário no conto, evidenciando a posição secundária que as crianças exerciam naquele tempo – o tempo da autora, que pode coincidir com o da história. Ela apenas anuncia o fato de que a galinha pôs um ovo e, depois, concorda com o pai quando este diz que não mais matarão a galinha. Ou seja, a criança tinha consciência das coisas que se desenrolavam ao seu redor, mas não tinham voz ativa para emitir sua própria opinião. Ao perceber que a galinha havia colocado um ovo, a menina limita-se a pedir para a mãe que “não mate mais a galinha, ela pôs um ovo”, evidenciando que a decisão sobre este assunto não cabia a ela, e sim a um adulto. No entanto, a decisão final não coube à mãe, e sim ao pai, e é ele quem decide não matar mais a galinha.
A cozinheira – mais um personagem feminino que ocupa um lugar secundário no conto – praticamente não aparece na história, sendo apenas citada no trecho “o tempo da cozinheira dar um grito”, por ocasião da fuga da galinha. Além de ser mulher, a cozinheira ocupa uma posição que, ainda hoje, enfrenta certo preconceito, que é a de empregada doméstica. Convivendo diariamente com a família – chegando até mesmo a morar com ela –, mas sem fazer parte dela, a cozinheira ocupa uma posição de invisibilidade social, vivendo uma vida marginalizada, sendo lembrada apenas quando seus serviços se fazem necessários – a mesma invisibilidade social que atinge garis, mendigos e outras parcelas da população que ocupam postos ou classes sociais consideradas ‘inferiores’, não merecendo um olhar mais atento por parte daqueles que possuem um pouco mais de recursos econômicos e/ou possuem uma posição social privilegiada.
Temos, assim, a galinha como protagonista da história e o pai como antagonista. Os demais personagens – mãe, filha e cozinheira – ocupam uma posição secundária, para os quais não é dado um maior destaque.
A galinha é o único personagem ‘feminino’ que ocupa um destaque na história. A figura da galinha é usada como uma metáfora para demonstrar o papel da mulher na sociedade da época. A autora utiliza-se deste personagem para criticar a maneira como a mulher era vista e tratada, já que o conto foi publicado em 1960, época em que movimentos feministas começavam a se espalhar pelo mundo.
A maneira como a galinha/mulher é tratada pode ser vista em trechos como “Não olhava para ninguém. Ninguém olhava para ela”; “Nunca se adivinharia nela um anseio”. Até uma certa época, a mulher era tratada como se não tivesse vontade própria. Vivia sob o domínio do pai, até que um dia casava-se e passava a viver sob o domínio do marido; ao morrer o marido, o controle passava para o filho mais velho. A mulher não era olhada como um ser pensante e inteligente – assim como a galinha, normalmente considerada como sendo estúpida –, apenas como objeto de admiração por causa de sua beleza e/ou atrativos sexuais.
O mesmo ocorre com a figura da galinha. Ela não recebia nenhum tipo de atenção – “Ninguém olhava para ela”; “usando suas duas capacidades: a de apatia e a de sobressalto”. A galinha só mereceu uma atenção maior em dois momentos do conto: quando alçou voo, e a família se viu perdendo seu almoço de domingo; e quando pôs um ovo e despertou na família a ideia da maternidade.
Basicamente, o mesmo ocorria em relação à mulher. Criada para casar e ter filhos – ou seja, a mulher era vista apenas como um instrumento para procriação –, a mulher só merecia destaque quando se casava e, vestida de noiva, tornava-se o centro das atenções; e quando ficava grávida. A gravidez, por conta de aspectos religiosos impostos pelo cristianismo, era vista como algo quase sagrado, divino, quando comparada com a gravidez de Maria, mãe de Jesus.
Ao pôr o ovo, a galinha despertou nas pessoas o senso da maternidade, tornando-se “a rainha da casa”. Ao chocar o ovo, criou uma analogia com a gravidez feminina, quando o embrião ainda se encontra em desenvolvimento para se tornar um ser humano. Neste momento, todos passaram a se interessar e a se preocupar com a galinha, fazendo até com que o pai pensasse, com um certo tom de remorso, que “a obriguei a correr naquele estado!”
A importância da mulher – e da galinha – residia no fato de que a gravidez era um momento de importância, conforme se observa em um trecho do conto que diz “nascida que fora para a maternidade”. Um filho – principalmente se fosse homem – iria perpetuar o nome da família e cuidar dos negócios do pai. No caso da galinha, colocar ovos supriria as necessidades de alimentação da família e, caso o ovo fosse chocado, geraria uma nova galinha que serviria de alimento ou poria mais ovos para sustentar a família.
Neste conto, Clarice não se utiliza de um recurso que acompanha grande parte de sua obra: a epifania. De acordo com definições de Affonso Romano de Sant’Anna, a epifania seria uma “uma súbita revelação da verdade”, “o relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar a força de uma inusitada revelação” ou, ainda, “a percepção de uma realidade atordoante quando os objetos mais simples, os gestos mais banais e as situações mais cotidianas comportam iluminação súbita na consciência dos figurantes...”.
No conto “Amor” e no romance “A paixão segundo G. H.”, por exemplo, ocorre o fenômeno da epifania, quando as personagens, movidas por um incidente banal, entram em um processo de quase ‘revelação’, até que, no final, voltam à sua vida cotidiana. Ou seja, nas histórias de Clarice, a epifania é um momento efêmero que, praticamente, não deixa marcas nas personagens, já que elas retornam ao estado inicial após este momento epifânico.
No conto “Uma galinha”, a epifania não acontece. O mais próximo que ocorre de uma epifania é quando a galinha põe o ovo e a filha diz que “Ela quer o nosso bem”. O pai, também sensibilizado por aquela situação, alega que “nunca mais comerei galinha na minha vida”, caso a galinha seja morta para servir de almoço. A mãe permanece apática diante da situação, acatando a decisão do pai sem questionar. Não se conhece a reação da cozinheira, mas, provavelmente, estaria apenas esperando, pacientemente, a decisão dos patrões para saber o que deveria fazer – matar a galinha ou providenciar outra coisa para o almoço.
Assim, em nenhum dos dois casos – a reação da menina e a do pai – ocorreu realmente uma epifania, já que não houve uma reflexão sobre a questão. Ambos apenas aceitaram a situação, movidos mais por um sentimento instintivo e inconsciente do que por uma reflexão sobre aquele instante. Em nenhum momento os personagens modificam sua visão de mundo ou chegam, sequer, a pensar sobre ela.
A galinha, durante toda a história, é descrita como “Estúpida, tímida”, “Inconsciente da vida que lhe fora entregue” ou “vazia cabeça”. No entanto, o que podemos observar é que os demais personagens da trama não agem de maneira diferente. Eles também, a seu modo, levam uma vida estúpida e tímida, e também tinham sua própria inconsciência da vida que lhes fora entregue. Assim como a galinha, mal tendo posto o ovo, “parecia uma velha mãe habituada”, movida por um instinto atávico que a levava a exercer a maternidade sem que precisasse refletir sobre ela, as pessoas que compunham a família também parecem agir de maneira inconsciente, deixando-se levar por um instinto que lhes havia sido passado pelos seus pais e que eles, por sua vez, passariam a seus filhos. A tão propalada ‘superioridade’ dos homens sobre os animais seria um mito, pois a maioria das pessoas acabam realizando suas ações mais por instinto do que por reflexões sobre a situação.   
O conto, dessa forma, serve como um momento de reflexão sobre a Vida e sobre o comportamento dos seres humanos. Reflexão esta que não parte dos personagens, que em nenhum momento se põem a pensar sobre o que está ocorrendo naquele instante. Eles apenas se deixam levar por velhos hábitos que eles mesmos não se dão conta de onde vieram. Esta reflexão deverá ser feita pelo leitor – se é que este a fará!
Sob este aspecto, o conto inteiro funciona como uma epifania, com o intuito de, partindo de um fato banal – a fuga de uma galinha que serviria de almoço e a sua subsequente maternidade –, nos fazer pensar sobre situações para as quais não damos maior importância, nos deixando levar ao sabor da corrente, uma massa humana que se guia pelo instinto, assim como os animais se deixam levar pelo instinto, cada raça agindo da mesma maneira em qualquer lugar do mundo.
O conto “Uma galinha” confunde-se, em alguns momentos, com o conceito de fábula e parábola. Fábula é uma estória que possui como personagens animais, vegetais ou minerais e tem um objetivo instrutivo. Além disso, a fábula e uma história breve”. Já a parábola tem, como personagens, homens. Tal como a fábula, a parábola tem sentido moralista, mas seu sentido não é aparente, utilizando uma linguagem figurada e com os personagens possuindo um sentido simbólico. No conto “Uma galinha”, temos um animal como personagem central – afinal, sem a galinha a estória não aconteceria –, assim como em uma fábula. E, além disso, como em uma parábola, o sentido do conto não é aparente. A galinha, assim como os demais personagens do conto, na verdade funcionam como estereótipos para exemplificar pessoas e situações reais. A família do conto representa um padrão do que seria uma família comum – no Brasil e em várias partes do mundo. A galinha funciona como uma metáfora para discutir a situação da mulher em uma sociedade machista e paternalista. Neste conto, os personagens funcionam mais como símbolos do que como pessoas reais vivenciando situações possíveis.
Diferentemente da fábula, que tem caráter instrutivo, e da parábola, cujo objetivo é moralizante, o conto de Clarice não procura instruir nem criar conceitos moralizantes – ao contrário, a exemplo de Derrida, ela parece procurar mais ‘desconstruir’ para que, no meio dos destroços, se possa encontrar a base de um novo conceito a ser discutido e pensado.
Antenada com fatos que aconteciam no mundo – Clarice foi casada com o diplomata Maury Gurgel Valente e chegou a viver quinze anos fora do Brasil, morando em cidades como Nápoles, Berna, Torquay e Washington –, Clarice presenciou movimentos culturais, políticos e econômicos que aconteciam na Europa e América do Norte, relacionando os novos pensamentos e comportamentos com a atmosfera que ainda permeava o pensamento brasileiro. Em seus textos, Clarice põe em discussão vários valores – família, situação da mulher etc. –, procurando fazer com que o brasileiro também acompanhasse esse momento de mudança e de comportamento que começava – ou continuava – a se espalhar pelo mundo.
Desta forma, podemos observar que, apesar da aparente simplicidade citada no início deste texto, o conto “Uma galinha”, bem como o restante da obra de Clarice Lispector, suscita reflexões sobre os mais variados temas: família, individualidade, maternidade, condições sociais e muitos outros.
A obra de Clarice Lispector merece ser lida e analisada pela profundidade com que trata de temas que, mesmo atualmente, ainda são debatidos sem que se consiga chegar a uma decisão satisfatória sobre o assunto. Nas suas histórias, Clarice nos mostra que das coisas mais simples podemos extrair grandes ensinamentos. Cada um de nós pode alcançar sua própria epifania.                          

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Cartas e diários: a função do narrador em “Drácula”, de Bram Stoker



Qualquer estudante de Teoria da Literatura conhece os tipos de narrador: intradiegético e extradiegético. O narrador extradiegético é aquele que não participa da história. É um narrador onisciente, que não nos revela quem ele é e nem como ficou conhecendo os detalhes da história que narra. Já o tipo de narrador intradiegético se divide em três tipos: autodiegético, quando o narrador nos conta as suas próprias aventuras, ou seja, o narrador é o personagem principal da história (um exemplo é Bentinho, o narrador de Dom Casmurro); homodiegético, quando o narrador participa da história, mas nos conta as aventuras de outra pessoa (exemplo clássico é o Dr. Watson, o narrador das aventuras de Sherlock Holmes); e heterodiegético, quando o narrador não participa diretamente da história que narra, geralmente conhecendo a história por documentos ou relatos de outras pessoas (é o caso do filme “Sempre ao seu lado”, onde o narrador é o neto do professor de música, falecido muitos anos antes de ele nascer). A maioria dos livros possui um destes tipos de narrador para desenvolver a trama que será narrada ao leitor.
Em Drácula, a obra clássica de Bram Stoker, a história é narrada por meio de cartas, diários e notas de jornal. Neste caso, não existe apenas um narrador, mas vários narradores, já que alguns personagens expressam seu ponto de vista sobre a história narrada por intermédio de suas cartas e anotações em diários. Assim, os narradores acabam se misturando e acabamos por ter a narração da história por meio de diferentes pontos de vista. Essa é uma mudança fundamental na estrutura do enredo que, normalmente, nos apresenta o ponto de vista de apenas um narrador, o qual tem o controle total sobre a história que está sendo contada. Quando existe mais de um narrador esse controle se esvai, já que diferentes narradores podem ter pontos de vista diferentes sobre uma mesma questão. Em Drácula, temos a narração da história por intermédio do diário de Jonathan Harker; das cartas e do diário de Mina Murray (noiva de Jonathan Harker); das cartas de sua amiga, Lucy; recortes de jornais; cartas do dr. Seward, diretor do sanatório, além de gravações que o mesmo faz sobre os seus pacientes; e uma gravação do dr. Van Helsing.
Embora do ponto de vista da teoria literária Bram Stoker tenha utilizado apenas um tipo de narrador, o homodiegético (já que todos os narradores participam da história, embora nenhum deles seja o personagem principal, o qual é o próprio Drácula), ele inovou com esse tipo de narração ao nos oferecer pontos de vista diferentes sobre a história que nos está sendo narrada. Este é um recurso interessante, pois temos acesso a diversas situações que estão ocorrendo em diferentes locais, às quais alguns narradores-personagens não têm acesso e, nesse caso, não poderiam ‘contar’ ao leitor o que está ocorrendo. Assim, é como se tivéssemos um narrador extradiegético, que tivesse consciência de tudo o que ocorre em qualquer lugar e com todos os personagens, nos dando uma visão global da história. Do ponto de vista estrutural, Drácula é um livro inovador, misturando conceitos e diluindo fronteiras – narrativas, espaciais etc.
Publicado originalmente em 1897, Drácula tem uma legião de admiradores, tendo diversas publicações e sendo traduzido para diversas línguas. Drácula tornou-se o representante legítimo do mito do vampiro, com todos os demais vampiros que apareceram depois dele sendo inspirados por este personagem fascinante.
Drácula é o típico caso em que um personagem supera o próprio autor (Sherlock Holmes, criado por Conan Doyle, é outro exemplo). Porém, Bram Stoker escreveu outros textos que, atualmente, encontram-se quase esquecidos, mas que também merecem ser lidos.