A obra de João Guimarães Rosa nos permite efetuar várias
leituras diferentes sobre os mais diversos temas, o que faz com que sua obra
seja uma das mais ricas da literatura brasileira e, até mesmo, da literatura
mundial. Guimarães Rosa nos apresenta um sertão rico em descrições tanto
físicas quanto linguísticas. Rosa era um pesquisador do sertão, o que faz com
que sua obra seja rica em detalhes. Nesse aspecto, seu trabalho se aproxima
de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, embora não possua o tratamento técnico,
científico deste.
A preocupação com a linguagem é uma das marcas da obra de
Rosa. Ele faz uso de um falar sertanejo, bem como de uma linguagem mais
refinada, ambas as linguagens presentes no sertão, ao mesmo tempo separando e
unindo os personagens. A linguagem do sertão se faz presente no mundo, e a
linguagem do mundo se faz presente no sertão. Para o próprio Guimarães Rosa, o
sertão é o mundo. Conforme as palavras do personagem-narrador Riobaldo, em “Grande
sertão: veredas”, “o sertão está em toda a parte”.
Muitos teóricos afirmam que Guimarães Rosa faz uso de
diversos neologismos nos seus textos, inventando, ele mesmo, muitas das
expressões utilizadas no livro. No entanto, uma observação mais atenta nos
mostra que, em muitos casos, Guimarães Rosa faz uso de estrangeirismos (é o
caso de esmarte, do inglês smart, e joliz, do francês joli
mais a palavra portuguesa feliz) e de
arcaísmos (é o caso de vuvú vavavá, que
constam do Pequeno Dicionário Brasileiro
da Língua Portuguesa). Muitas expressões usadas nos seus textos são
palavras dicionarizadas que, por um motivo qualquer, deixaram de ser utilizadas
e que já eram consideradas arcaísmos na época em que sua obra foi escrita.
Guimarães Rosa foi tachado tanto de reacionário (por se
utilizar de arcaísmos) quanto de revolucionário (por se utilizar de neologismos
e de estrangeirismos). O termo “reacionário” é usado, geralmente, de uma forma
pejorativa. Entretanto, se considerarmos que, ao utilizar uma palavra já
esquecida, portanto, desconhecida para a maioria, senão para a totalidade, dos
leitores, revivendo-a, isso teria o mesmo efeito que a criação de uma palavra
nova (já que, para os leitores, essa palavra seria, efetivamente, “nova”).
Assim, ele estaria sendo mais revolucionário do que reacionário.
Porém, o que se observa é que, mais do que trabalhar a
linguagem, “Grande sertão: veredas”, talvez mais do que qualquer outra obra de
Guimarães Rosa, ressalta o conflito entre a tradição oral e a escrita. Além dos
diversos ‘causos’ contados pelo personagem-narrador, Riobaldo, que são uma
característica da história transmitida de forma oral no sertão, há também a
própria estrutura narrativa utilizada pelo autor: o monólogo. O texto se inicia
pela fala de Riobaldo, dispensando a presença de um narrador que normalmente
situaria a história, o local e os personagens. Enquanto n’Os sertões, de
Euclides, temos um capítulo destinado a descrever a terra e outro a descrever o
homem, antes de narrar a luta, que é o objetivo do livro, em Rosa vamos
conhecendo um e outro – terra e homem – à medida em que a narrativa de Riobaldo
avança.
Rosa também nos faz acreditar na presença de um
interlocutor que estabelece um diálogo – outra característica da oralidade – com
Riobaldo, um interlocutor cuja presença, contudo, está comprometida pela
própria fala de Riobaldo. O interlocutor de Riobaldo não é passivo – ele
“participa” da narrativa fazendo perguntas e pequenas interrupções –, contudo,
essa não-passividade só se dá através do próprio Riobaldo, o qual monopoliza
toda a narração – o que é uma característica de um texto escrito. Os personagens
falam pela boca de Riobaldo. Temos, nesse caso, uma ambiguidade onde um texto
escrito encena uma situação falada e onde a oralidade simula um texto escrito. A
escolha de uma narrativa que simula a oralidade revela-nos uma simulação do
próprio ambiente do sertão, repleto de personagens rústicos, refratários a
mudanças.
Longe de se limitar, entretanto, à ambiguidade entre
oralidade e escrita, Rosa estende essa dicotomia para a própria situação do
sertão: um ambiente de tensão constante entre os senhores proprietários de
terras e o povo, ou seja, a língua escrita como forma de opressão em contraste
com a liberdade que se permite a oralidade. O próprio diálogo de Riobaldo com o
interlocutor não-nomeado já representa uma ambiguidade, um conflito: o interlocutor
demonstra ser um homem culto e cosmopolita, enquanto Riobaldo, atualmente um
fazendeiro, já foi jagunço no passado.
A figura do interlocutor não-nomeado, homem letrado, o
qual aparentemente questiona Riobaldo sobre as coisas do sertão, sugere alguém
que não pertence àquele meio, embora possua grande interesse nele. Sugere a
pessoa de um pesquisador mais do que a de um simples curioso. Esse perfil do
interlocutor se encaixa perfeitamente no perfil do próprio Guimarães Rosa, o
qual viajava pelo sertão conversando com as pessoas, coletando “causos”,
observando a paisagem e a linguagem. Encarando a situação por este ângulo, temos
mais uma ambiguidade que permeia o texto. Se considerarmos Rosa como sendo o
interlocutor, o narrador passaria a ser esse mesmo interlocutor e, portanto, o
texto readquiriria o seu caráter de linguagem escrita; caso contrário, teremos
a figura de Riobaldo como narrador e, portanto, voltamos à linguagem oral. Ou
seja, de maneira sub-reptícia, Rosa figura a tensão, no controle da narrativa,
entre oralidade – Riobaldo, o sertão – e escrita – o interlocutor cosmopolita,
o urbano.
Oralidade e escrita, sertão e litoral, proprietários de
terras e povo, Deus e Diabo! A própria palavra ‘veredas’, do título, expressa
essa dualidade: de acordo com o dicionário Aurélio, vereda, na linguagem do
nordeste brasileiro, significa “região mais abundante em água na zona da
caatinga, entre as montanhas e os vales dos rios, e onde a vegetação é um misto
de agreste e caatinga”. Vereda também
significa “caminho estreito, senda”, em contraste com o “grande sertão”.
A linguagem pode ser tão vasta quanto o sertão, mas também
pode ser tão limitadora e estreita quanto uma vereda!
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