sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A tensão entre oralidade e escrita em “Grande sertão: veredas”



A obra de João Guimarães Rosa nos permite efetuar várias leituras diferentes sobre os mais diversos temas, o que faz com que sua obra seja uma das mais ricas da literatura brasileira e, até mesmo, da literatura mundial. Guimarães Rosa nos apresenta um sertão rico em descrições tanto físicas quanto linguísticas. Rosa era um pesquisador do sertão, o que faz com que sua obra seja rica em detalhes. Nesse aspecto, seu trabalho se aproxima de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, embora não possua o tratamento técnico, científico deste.
A preocupação com a linguagem é uma das marcas da obra de Rosa. Ele faz uso de um falar sertanejo, bem como de uma linguagem mais refinada, ambas as linguagens presentes no sertão, ao mesmo tempo separando e unindo os personagens. A linguagem do sertão se faz presente no mundo, e a linguagem do mundo se faz presente no sertão. Para o próprio Guimarães Rosa, o sertão é o mundo. Conforme as palavras do personagem-narrador Riobaldo, em “Grande sertão: veredas”, “o sertão está em toda a parte”.
Muitos teóricos afirmam que Guimarães Rosa faz uso de diversos neologismos nos seus textos, inventando, ele mesmo, muitas das expressões utilizadas no livro. No entanto, uma observação mais atenta nos mostra que, em muitos casos, Guimarães Rosa faz uso de estrangeirismos (é o caso de esmarte, do inglês smart, e joliz, do francês joli mais a palavra portuguesa feliz) e de arcaísmos (é o caso de vuvú vavavá, que constam do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa). Muitas expressões usadas nos seus textos são palavras dicionarizadas que, por um motivo qualquer, deixaram de ser utilizadas e que já eram consideradas arcaísmos na época em que sua obra foi escrita.
Guimarães Rosa foi tachado tanto de reacionário (por se utilizar de arcaísmos) quanto de revolucionário (por se utilizar de neologismos e de estrangeirismos). O termo “reacionário” é usado, geralmente, de uma forma pejorativa. Entretanto, se considerarmos que, ao utilizar uma palavra já esquecida, portanto, desconhecida para a maioria, senão para a totalidade, dos leitores, revivendo-a, isso teria o mesmo efeito que a criação de uma palavra nova (já que, para os leitores, essa palavra seria, efetivamente, “nova”). Assim, ele estaria sendo mais revolucionário do que reacionário.
Porém, o que se observa é que, mais do que trabalhar a linguagem, “Grande sertão: veredas”, talvez mais do que qualquer outra obra de Guimarães Rosa, ressalta o conflito entre a tradição oral e a escrita. Além dos diversos ‘causos’ contados pelo personagem-narrador, Riobaldo, que são uma característica da história transmitida de forma oral no sertão, há também a própria estrutura narrativa utilizada pelo autor: o monólogo. O texto se inicia pela fala de Riobaldo, dispensando a presença de um narrador que normalmente situaria a história, o local e os personagens. Enquanto n’Os sertões, de Euclides, temos um capítulo destinado a descrever a terra e outro a descrever o homem, antes de narrar a luta, que é o objetivo do livro, em Rosa vamos conhecendo um e outro – terra e homem – à medida em que a narrativa de Riobaldo avança.
Rosa também nos faz acreditar na presença de um interlocutor que estabelece um diálogo – outra característica da oralidade – com Riobaldo, um interlocutor cuja presença, contudo, está comprometida pela própria fala de Riobaldo. O interlocutor de Riobaldo não é passivo – ele “participa” da narrativa fazendo perguntas e pequenas interrupções –, contudo, essa não-passividade só se dá através do próprio Riobaldo, o qual monopoliza toda a narração – o que é uma característica de um texto escrito. Os personagens falam pela boca de Riobaldo. Temos, nesse caso, uma ambiguidade onde um texto escrito encena uma situação falada e onde a oralidade simula um texto escrito. A escolha de uma narrativa que simula a oralidade revela-nos uma simulação do próprio ambiente do sertão, repleto de personagens rústicos, refratários a mudanças.
Longe de se limitar, entretanto, à ambiguidade entre oralidade e escrita, Rosa estende essa dicotomia para a própria situação do sertão: um ambiente de tensão constante entre os senhores proprietários de terras e o povo, ou seja, a língua escrita como forma de opressão em contraste com a liberdade que se permite a oralidade. O próprio diálogo de Riobaldo com o interlocutor não-nomeado já representa uma ambiguidade, um conflito: o interlocutor demonstra ser um homem culto e cosmopolita, enquanto Riobaldo, atualmente um fazendeiro, já foi jagunço no passado.             
A figura do interlocutor não-nomeado, homem letrado, o qual aparentemente questiona Riobaldo sobre as coisas do sertão, sugere alguém que não pertence àquele meio, embora possua grande interesse nele. Sugere a pessoa de um pesquisador mais do que a de um simples curioso. Esse perfil do interlocutor se encaixa perfeitamente no perfil do próprio Guimarães Rosa, o qual viajava pelo sertão conversando com as pessoas, coletando “causos”, observando a paisagem e a linguagem. Encarando a situação por este ângulo, temos mais uma ambiguidade que permeia o texto. Se considerarmos Rosa como sendo o interlocutor, o narrador passaria a ser esse mesmo interlocutor e, portanto, o texto readquiriria o seu caráter de linguagem escrita; caso contrário, teremos a figura de Riobaldo como narrador e, portanto, voltamos à linguagem oral. Ou seja, de maneira sub-reptícia, Rosa figura a tensão, no controle da narrativa, entre oralidade – Riobaldo, o sertão – e escrita – o interlocutor cosmopolita, o urbano.
Oralidade e escrita, sertão e litoral, proprietários de terras e povo, Deus e Diabo! A própria palavra ‘veredas’, do título, expressa essa dualidade: de acordo com o dicionário Aurélio, vereda, na linguagem do nordeste brasileiro, significa “região mais abundante em água na zona da caatinga, entre as montanhas e os vales dos rios, e onde a vegetação é um misto de agreste e caatinga”.  Vereda também significa “caminho estreito, senda”, em contraste com o “grande sertão”.
A linguagem pode ser tão vasta quanto o sertão, mas também pode ser tão limitadora e estreita quanto uma vereda!  

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