sábado, 2 de março de 2013

Camões e Bocage: mitos e fatos confundindo vida e obra dos dois poetas



Bocage é um dos mais importantes poetas de Portugal, formando com Luís Vaz de Camões e Antero de Quental a Santíssima Trindade da poesia lusitana. Se incluirmos Fernando Pessoa, seriam o Quarteto Fantástico da poesia portuguesa. Inclusive, não raro nos deparamos com comparações entre Bocage e Camões, tanto pela importância de ambos na literatura portuguesa quanto por semelhanças entre a vida dos dois poetas. Muitos dos acontecimentos da vida de Bocage guardam semelhanças com situações que ocorreram com Camões. Porém, é necessária alguma cautela ao examinarmos esses acontecimentos, já que na vida dos dois poetas fatos biográficos e mito não raro se confundem.  
Bocage é um confesso admirador de Camões, com quem se compara nas desventuras da vida, mas reconhece-se um poeta “inferior” ao mestre, conforme se pode observar nas estrofes abaixo:

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa no fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:
[...]
Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Bocage parecia perseguir, de forma consciente, essas semelhanças, levando-nos a considerar que muitas das situações foram planejadas pelo próprio Bocage para que se parecessem com fatos ocorridos com Camões. Alguns fatos estão registrados, enquanto outros são de procedência duvidosa, talvez uma invenção do próprio Bocage para fazer com que sua vida se assemelhasse a de seu mestre. Como todo bom poeta, Bocage era um fingidor, conforme nos diz Fernando Pessoa.
Além das semelhanças entre a vida dos dois poetas – ambos foram soldados, viajaram por países do Oriente, morreram praticamente na miséria –, também apresentaram semelhanças no campo literário. Um exemplo é o nome que Bocage deu à sua obra, publicada ainda em vida, a qual tem o mesmo nome de uma obra de Camões, publicada postumamente: Rimas. A obra de Camões foi publicada em cinco volumes, enquanto a de Bocage foi publicada em três; enquanto Camões retratou, em Os Lusíadas, as glórias da história de Portugal, desde sua formação como nação até a época das Grandes Navegações, Bocage retratou as mudanças pelas quais passavam Portugal e o resto da Europa; se em Os Lusíadas Camões tratou do episódio da morte de Inês de Castro, Bocage também não se mostrou indiferente a esse episódio, escrevendo À Morte de Inês de Castro, que ele inicia com dois versos retirados do Canto III, Instância 135, do próprio Os Lusíadas; ambos fizeram referência aos deuses da mitologia grega – Camões utilizando-os conforme exigia o modelo do épico; Bocage seguindo, inicialmente, o modelo utilizado pelo Arcadismo, o qual ressuscitou o modelo clássico.
Um outro paralelo, citado pelos críticos e estudiosos de literatura, refere-se ao uso dos sonetos como forma de expressão. Tanto Camões quanto Bocage utilizaram-se dessa forma para compor alguns de seus melhores poemas, utilizando-se do formalismo do soneto para realizar a expressão, de forma condensada, dos estados emocionais.
Além disso, Bocage, sempre que pôde, utilizou-se de paralelismos com Os Lusíadas em seus poemas. Um exemplo é o Canto e soneto ao Capitão Lunardi, onde Bocage utiliza-se da comparação do citado Capitão Lunardi com personagens mitológicos, tais como Ícaro e Prometeu, além de personagens históricos de Portugal, como Magalhães e Vasco da Gama, ambos presentes em Os Lusíadas. Além disso, no mesmo poema Bocage contrapõe a “escuridade” e a luz, com aquela representando aqueles que iam contra o progresso, e esta representando os homens ilustrados, os sábios representantes da ciência. Os “ilustrados varões” são aqueles que defendem o progresso, numa clara referência ao início de Os Lusíadas (“As armas e os barões assinalados”). Camões retratou os marinheiros portugueses, homens audazes que se lançaram ao mar em busca de novas terras, como sendo os homens que trariam o progresso a Portugal e, no mesmo Os Lusíadas, o Velho do Restelo como símbolo da precaução e do conservadorismo.
Ou seja, guardadas as devidas proporções, e sem diminuir o mérito de Bocage nas letras portuguesas, é inegável que ele teve Camões como modelo, e procurou moldar a sua vida de acordo com a do seu mestre, procurando imitá-lo nos transes da vida bem como na estética literária.   

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