sexta-feira, 15 de março de 2013

Dom Casmurro: um narrador entre o ser e o não-ser


A obra ‘Dom Casmurro’, assim como as demais obras de Machado de Assis, apresenta um imenso leque de opções de onde o teórico, seja ele um profissional ou um estudante de literatura, pode tirar elementos variados para a sua abordagem, seja ela feita do ponto de vista psicológico, social ou político. Talvez nenhum outro escritor brasileiro soube explorar tão bem aspectos tão diversos, antevendo situações e antecipando estilos, bem como trabalhando aspectos psicológicos complexos que, posteriormente, foram corroborados por estudiosos de psicologia e psicanálise.       
Em termos puramente literários, Machado foi um autor sui generis, de um estilo próprio, sem ficar preso aos estilos literários de sua época. Não há um Machado romântico e outro realista, embora se encontrem traços desses dois estilos, e de outros, em suas obras. Há um escritor que não se prendeu a modismos, que brincava com os estilos, passeava por eles, flertava ora com um ora com outro, mas não se comprometendo com nenhum.
Machado manteve em comum com os naturalistas o desvelamento das doenças, tanto humanas quanto sociais. Contudo, enquanto estes focalizaram sua atenção para os elementos que se mantinham à margem da sociedade (como exemplo, “O cortiço”, de Azevedo), Machado voltou-se para as camadas mais altas da sociedade. Percebeu que os problemas sociais que imperavam no Brasil partiam ‘do alto’, de sua classe dominante, e se espalhavam pelas camadas mais baixas da sociedade. Em “Dom Casmurro” temos o exemplo das relações de classe demonstrado nas relações entre os personagens principais e os secundários, numa alusão ao relacionamento entre a classe dominante e as camadas mais pobres da população brasileira. De um lado temos D. Glória, viúva de um fazendeiro e deputado, a qual vive da renda gerada pela venda da fazenda e do arrendamento de escravos para terceiros. Orbitando à sua volta estão a prima Justina, o irmão Cosme e o agregado José Dias. Este, sem recursos próprios e vivendo às custas de D. Glória, mostra-se subserviente com a sua benfeitora, procurando tudo fazer para agradá-la, mesmo que apenas na aparência. A própria D. Glória vive da exploração de escravos, os quais aluga para terceiros, daí obtendo sua renda. Ainda hoje vemos esse mesmo tipo de relacionamento entre a classe detentora dos meios de produção e do capital, de um lado, e do proletariado, de outro. Se, atualmente, temos leis que, teoricamente, amparam os indivíduos das classes mais baixas, na época de Machado a classe dominante mantinha uma espécie de exploração institucionalizada, já que não havia leis específicas com relação ao trabalho, além de que a escravidão era legalizada. Na obra, D. Glória era manipuladora, impondo sua vontade sobre os demais membros da casa, mesmo que não o fizesse de forma tão enérgica, assim como as classes dominantes manipulavam e impunham suas vontades sobre as classes inferiores. O mesmo se dá com Bento. Valendo-se da sua posição de narrador e da sua posição de classe dominante, a todo momento ele manipula e impõe sua versão dos fatos, numa clara tentativa de convencer o leitor – e, talvez, a si próprio – da traição da esposa. A realidade para ele é a sua noção de realidade. Capitu – oriunda de uma família socialmente inferior à de Bentinho –, não tem direito à defesa. Sua voz é calada pela voz possante e dominadora de Bentinho (enquanto voz do narrador e do proprietário), sua versão dos fatos não tem importância diante das certezas delirantes do marido.
Bem diferente, também, foi o tratamento dado à questão do amor em su
as obras. Rompendo com o Romantismo, onde o amor tudo podia e os amantes eram capazes de superar os maiores obstáculos em nome desse amor, Machado nos mostrou uma visão mais realista, onde o amor geralmente sucumbia aos interesses de riqueza e posição social – Virgília, de “Memórias póstumas”, é um ótimo exemplo – ou andava de braços dados com um ciúme doentio que acabava por destruí-lo – é o caso de Bento e Capitu em “Dom Casmurro”. Nas obras ‘românticas’, o amor vencia os interesses de ascensão social e de riqueza ou, pelo menos, andava de braços dados com ele. O casal geralmente conseguia realizar as suas aspirações sociais ao mesmo tempo em que nutriam um amor verdadeiro um pelo outro. Machado nos mostra um amor em segundo plano, deixado de lado em favor das aspirações sociais. Os casamentos, na sua maior parte, são realizados por interesse. Para a mulher, o casamento seria uma forma de ascensão social e obtenção de riqueza – ou de mais projeção, caso ela já fosse proveniente de uma família abastada; para o homem, ter uma família constituída era um símbolo de status, principalmente quando ele exercia um cargo público relevante. Assim, para suprir o amor que o casamento não trazia, recorria-se ao adultério, formando os famosos “triângulos machadianos”. O adultério, para o homem, era algo considerado normal e, até mesmo, necessário; para a mulher era um crime, passível de ser punido com a morte. No caso da mulher machadiana, nem sempre havia a necessidade de se consumar o adultério. O que importava, em alguns casos, era o jogo de sedução. Nesse caso, a mulher buscava apenas um ingrediente que movimentasse a sua vida insípida. 
Uma de suas técnicas narrativas era uma quase pobreza de descrições, a ausência da paisagem, a aparente quase imobilidade da trama. As situações das obras machadianas, ao contrário do movimento e ação encontrados nos romances ditos “românticos”, eram voltadas para o interior, concentravam-se na análise psicológica e na reflexão filosófica. Dessa forma, as tramas dos romances machadianos poderiam, com pequenas modificações que não prejudicariam a narrativa, ser transplantadas para qualquer lugar e/ou época. Machado também antecipou formas modernas de narrativa, tais como uma estrutura fragmentária, não-linear; a postura metalingüística de quem escreve e se vê escrevendo; tramas que nem sempre apresentam uma conclusão, o que permite leituras diversificadas.   
Machado, acima de tudo, foi um cronista do seu tempo, retratando com uma fina ironia as mazelas da sociedade de sua época. Buscou na sociedade os temas que tratava em sua obra: as frivolidades das convenções sociais, o caráter relativo da moral humana, a normalidade e a loucura. Trabalhou, principalmente, com a essência humana, com o universal. O tema central da obra de Machado é o problema da identidade. Machado trabalha com os limites da razão e do ser, o que culminou no tema central de “O alienista”. Seus personagens são dúbios. As grandes mulheres dos seus romances são, geralmente, dissimuladas; os personagens debatem-se entre os seus desejos e as convenções sociais, preocupam-se com a opinião pública. Bentinho, por exemplo, se vê às voltas com a adoração que tinha pela mãe e o amor que sentia por Capitu, e o desejo de agradar a ambas. Isso gera uma questão: em que medida existimos por meio dos outros? O ciúme doentio que Bentinho nutria por Capitu tornou-se o ponto central de sua vida.  
Em “Dom Casmurro” Machado trabalha com a questão da memória, criando uma hábil trama entre o fato real e o fato imaginado. O que aconteceu e o que pensamos que aconteceu? Bentinho tem plena convicção da traição de Capitu baseado nas “evidências” que sua mente concebe. Ele cria toda uma situação baseada nas suas desconfianças, no seu ciúme, na sua insegurança. Capitu passa a ser a personagem de uma trama criada pelo próprio Bento. Bentinho distorce a realidade narrando as impressões que ele tem dos acontecimentos. O personagem-narrador confunde-se com o autor.
Bentinho é um personagem que mutila o seu “eu”. Age movido pelas opiniões alheias, submisso às vontades da mãe e de Capitu. Até o sentimento que nutria por Capitu foi-lhe revelado por José Dias. No Capítulo X, página 16, o narrador nos diz que “mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou”.
Ou seja, ao contrário do ‘convicto’ Bento Santiago da fase adulta, cheio de certezas sobre a traição de Capitu, o Bentinho adolescente era uma marionete sem vontade própria, um joguete dos desejos da mãe e dos caprichos de Capitu, alheio aos seus próprios sentimentos e desejos. A personalidade fraca de Bentinho pode ter sido favorecida pela falta da figura masculina após a morte do seu pai. O agregado José Dias e o seu tio Cosme não lhe serviam como modelos masculinos. Tudo isso – a ausência da figura paterna, o agregado e o tio anulados pela presença e determinação de D. Glória e a insegurança de Bentinho frente às figuras femininas – denuncia uma crise e desmantelamento de uma sociedade patriarcal. Também se nota esse fato ao analisarmos a família Pádua. No Capítulo XVI, ‘O administrador interino’, na página 24, encontramos a seguinte passagem: “(...) mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa”.
Ou seja, Capitu repete com Bentinho a mesma influência que a mãe e ela própria tinham com seu pai, Pádua. O que denota que, apesar do fato de a figura do marido ser considerada a autoridade máxima, Machado reconhecia e denunciava a influência que a mulher tinha sobre a figura masculina, mesmo que aparentasse uma posição de submissão.
A prova da força da figura feminina nos é dada no mesmo capítulo, mostrando-nos um Pádua subserviente não só aos desejos da mulher e aos caprichos da filha, mas também à vontade de mulheres como D. Glória, a quem D. Fortunata fora pedir auxílio: “não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe”.
O próprio Bento, no Capítulo XXXI, ‘Curiosidades de Capitu’, página 44, diz que “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem”.
Ou seja, o próprio Bentinho reconhece sua fraqueza e a força de Capitu. E, por mais que gostasse da primeira namorada, deixava-se levar pelas maledicências de José Dias, como quando este foi visitá-lo no seminário e, perguntado sobre Capitu, disse que “tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo, enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela...”, ou quando fala que “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada”.   
É interessante notar que Machado, deliberadamente, não acusa nem inocenta Capitu. A convicção da traição é fruto exclusivo da mente de Bento, embora em nenhum momento o narrador apresente uma prova cabal da traição da esposa. A certeza é apenas sua. Da mesma forma, não se tem certeza da inocência de Capitu. Ou seja, Machado se isenta de fazer julgamentos. Afinal, o que menos importa é saber se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Nas obras de Machado, percebe-se claramente uma total relativização quanto aos atos praticados por seus personagens. Ao contrário da sociedade que criticava, a qual baseava-se em conceitos sobre o bem e o mal, o certo e o errado, Machado compreendia a impossibilidade de conceituá-los adequadamente, revelando um profundo senso da complexidade do ser humano e de suas contradições.

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