terça-feira, 12 de março de 2013

Os textos de informação como elemento formador da nossa literatura


Os assim chamados textos de informação, embora causem muitas controvérsias, são de grande importância para entendermos nossa história e, até mesmo, para o desenvolvimento da literatura que viria a se desenvolver no país. As controvérsias causadas por estes textos vão desde fatos históricos a discussões sobre serem considerados como literatura ou não. Além disso, fomos testemunhas de um fato raro entre os povos: apesar de os habitantes naturais do Brasil – os índios – serem ágrafos, nosso país teve o seu nascimento ligado diretamente ao símbolo escrito.   
Quanto aos fatos históricos, colocam-se dúvidas sobre a autenticidade de algumas passagens, inclusive pelo fato de que textos diferentes referem-se a um mesmo fato de maneira diversa. Na carta de Pero Vaz de Caminha, por exemplo, é narrado que dois degredados ficaram em terra, por ordem de Cabral, e que dois grumetes resolveram ficar naquela terra, quando da partida das naus, por vontade própria. Na carta do Piloto Anônimo – que muitos questionam ser de fato um piloto –, nada é dito quanto aos dois grumetes. Quanto aos degredados que aqui ficaram, é narrado que ambos tiveram que ser confortados pelos próprios índios, já que choravam desconsolados. Caminha não se refere a esse fato, dando-nos a entender que os degredados aceitaram a ordem sem nenhum questionamento. Em contrapartida, ambos os relatos concordam sobre a inocência dos nativos em relação a sua nudez. Eles não demonstram nenhuma vergonha em se mostrarem nus àqueles estrangeiros. Nem mesmo as mulheres demonstram qualquer tipo de pudor. E o interessante de se notar é que, embora venham de uma cultura onde a nudez é vista como algo vergonhoso, inconcebível, não se nota nos relatos que os exploradores sentiram-se incomodados com a nudez dos índios. Mostraram-se surpresos com a naturalidade e a inocência com a qual os nativos exibiam sua nudez, mas em nenhum momento pareceram incomodados ou chocados. Em contato com algo que, para os índios, era natural, passaram a encarar esse fato como natural também, embora para a sua cultura não o fosse.    
Lendo os textos desse período, podemos depreender dois pontos básicos: a preocupação dos cronistas em descrever a nova terra a ser conquistada, seus frutos, seus animais, seus rios e sua gente, de um lado; o assombro resultante da visão de um mundo diferente do que já haviam visto, de outro. A descrição da terra tem um propósito bem específico: fornecer elementos a El-Rei para que este pudesse decidir sobre um possível processo de colonização da nova terra, sobre as possibilidades que esta terra oferecia como fonte de riquezas para a Coroa. A descrição dos índios, sua inocência e amabilidade, bem como o conhecimento que possuíam da terra e a sua total integração com a natureza, pode servir como uma indicação de que aquele povo poderia ser utilizado como mão-de-obra, sem muitas dificuldades e sem ônus para a Coroa.
A descrição da floresta, dos animais, das flores, dos frutos demonstra, além de uma fonte de informações das possibilidades que aquela terra oferecia, devido às novidades que possuía em abundância, o assombro do europeu diante de um mundo novo, desconhecido, que impressiona pelo tamanho e exuberância, pelos mistérios que aquela imensa muralha verde pode ocultar em suas entranhas. Temos aí a admiração pela grandiosidade, o medo dos perigos ocultos, o respeito pelo desconhecido, a excitação pelas possibilidades, elementos do Sublime, um conceito explorado por Burke, no século XVIII, e utilizado soberbamente por Joseph Conrad em sua obra “O coração das trevas”, o qual pode ser demonstrado nesta passagem do livro: “O lugar parecia extraterreno. Estávamos habituado a vê-lo sob a forma de um monstro agrilhoado e domado, mas ali – o que víamos ali era uma coisa monstruosa e livre”. E esta parece ser a impressão que os cronistas têm da nova terra: um lugar selvagem, indomado, poderoso. Diferente de tudo o que eles já haviam visto em suas viagens e explorações. O desconhecido, ali, se fazia presente de uma maneira inteiramente nova para os exploradores. E esse devia ser o sentimento dos índios em relação aos homens brancos: a suntuosidade e curiosidade de suas vestes, as naus imensas, as armas e enfeites desconhecidos dos nativos. Um assombramento mútuo a dominar cada cultura. 
O Sublime, embora à época ainda não estivesse estruturado como conceito, marcaria o encontro do homem branco europeu com o índio nativo da nova terra. Longe de ser um encontro de intenções puramente mercantilista, o convívio do europeu com o índio teve implicações outras que influenciou a formação da própria terra recém-descoberta. Tanto que podemos observar em documentos e escritos dos jesuítas uma espécie de crítica aos costumes adotados pelos europeus radicados na nova terra, os quais pareceram amalgamar comportamentos europeus – tidos como ‘civilizados’ – com comportamentos demonstrados pelos índios – os chamados ‘selvagens’, povos sem ‘cultura’. Os colonos radicados no Brasil passaram a ter relações com as índias – e, posteriormente, com as negras –, praticaram a poligamia etc. A própria terra, com seus novos produtos sendo exportados para a Europa, modificou hábitos alimentares e comportamentais.   
Temos, aí, o reconhecimento da figura do ‘outro’. O índio, que teve a cultura do homem branco sendo-lhe impingida aos poucos, perdendo pouco a pouco sua própria identidade; e o homem branco, que teve que adaptar seus hábitos para as necessidades impostas por aquela nova terra onde sua cultura não tinha ainda conseguido se impor. A colônia, sendo explorada para lucro do europeu; e a metrópole, tendo que lidar com a nova terra que tinha em seu poder.  
Além disso, o europeu teve a sua cultura, considerada civilizada e superior, confrontada com os povos tidos como selvagens, tidos como uma cultura inferior ou, até mesmo, como povos sem cultura. Contudo, alguns estudiosos perceberam traços de civilidade que não eram encontrados mesmo em culturas européias. Além disso, alguns costumes considerados bárbaros pelos europeus, encontraram equivalentes em sua própria cultura. Enquanto condenavam alguns atos de ‘selvageria’ dos índios, perceberam os mesmos elementos utilizados, por exemplo, na Santa Inquisição.     
Quanto ao fato de serem considerados literatura ou não, os textos de informação ainda suscitam debates. É comum vermos esses textos inseridos, em livros sobre literatura, em um período conhecido como Quinhentismo, assim como temos o período conhecido como Seiscentismo ou Barroco. Muitos questionam o fato de esses textos de informação serem considerados como literatura, por diversos fatores: eram documentos – muitos oficiais, como a carta de Caminha – sobre as explorações que vários povos fizeram com o objetivo de conquistar novas terras para suas respectivas coroas; limitavam-se a descrever elementos da nova terra, tais como os índios, a floresta, os rios etc.; seus autores eram escrivães, pilotos, historiadores etc., estudiosos aparentemente sem pretensões literárias; seus autores eram europeus, e não nativos da nova terra. Contudo, se observarmos atentamente alguns documentos, veremos que determinadas partes não se limitam apenas a narrar fatos e descrever a geografia do local. Um documento estritamente oficial seria isento de linguagem poética, de senso de humor e de trocadilhos maliciosos. Caminha, talvez até mesmo inconscientemente, deu um certo tom “literário” à sua Carta, talvez inspirado pela grandiosidade do quadro que o cercava. Além disso, a admiração e o deslumbramento de alguns trechos das diversas crônicas escritas sobre o Brasil dão-lhes determinados elementos encontrados apenas em obras consideradas como sendo literatura. Além disso, as descrições que foram feitas sobre os índios serviram, mais tarde, de inspiração para o Romantismo, que tinha como uma de suas características o nacionalismo. Em oposição à literatura européia, onde os heróis nacionais são valentes cavaleiros medievais, na literatura brasileira temos a figura do índio como sendo o herói nacional. Além disso, temos toda a exuberância da natureza, que os românticos ora apresentam como pertencente à pátria, ora apresentam como uma espécie de refúgio à vida atribulada dos grandes centros urbanos de então. Temos em José de Alencar um dos autores que recuperou o elemento indígena, transformando-o em herói de seus romances: O Guarani, Iracema e Ubirajara. Esses livros apresentam o índio em três momentos distintos: em Ubirajara, a ação se passa em um período pré-cabralino, apresentando o índio em seu estado mais puro, uma espécie de índio original; em Iracema, temos o contato do índio, representado pela personagem-título, com o europeu, mostrando o que seria a origem do povo que seria chamado de ‘brasileiro’; e em O Guarani, o índio ‘europeizado’, fruto do contato com os colonizadores, principalmente com os jesuítas. Para a composição de O Guarani, Alencar pesquisou diversos documentos do período quinhentista. Posteriormente, temos em Mário de Andrade e o seu Macunaíma, já no período Modernista, uma retomada do elemento indígena como tema literário. Macunaíma é um anti-herói, índio que nasce preto e vira branco, representado a própria mistura racial que determinou o povo brasileiro, fruto dos cruzamentos entre índios, negros e brancos. Em ambos os casos – em Alencar e em Andrade –, temos uma espécie de volta às origens, um mergulho no período quinhentista como uma forma de resgatar a figura do índio, o verdadeiro índio, e uma busca por uma identidade nacional. 
Contudo, é inegável a influência da literatura portuguesa, em particular, e da européia, em geral, na formação da nossa própria literatura, já que esta era a única literatura que conhecíamos e que, portanto, era a única que poderia nos influenciar. Perguntado se outros escritores influenciaram seus escritos, Milton Hatoum respondeu que todo escritor é, antes de tudo, um leitor, portanto, não há como escapar a influências externas. O mesmo ocorreu com nossa literatura. A busca de uma literatura brasileira é, antes de tudo, a busca pelos elementos formadores de nossa terra, as influências que recebemos dos vários povos que aqui aportaram. E, mesmo em menor grau, essa sempre foi uma via de mão dupla.
Em um mundo que começou a se globalizar a partir das longas viagens marítimas e do comércio entre países, a figura do outro começou a se fazer cada vez mais presente.  

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