Os assim chamados textos de
informação, embora causem muitas controvérsias, são de grande importância para
entendermos nossa história e, até mesmo, para o desenvolvimento da literatura
que viria a se desenvolver no país. As controvérsias causadas por estes textos
vão desde fatos históricos a discussões sobre serem considerados como
literatura ou não. Além disso, fomos testemunhas de um fato raro entre os
povos: apesar de os habitantes naturais do Brasil – os índios – serem ágrafos,
nosso país teve o seu nascimento ligado diretamente ao símbolo escrito.
Quanto aos fatos históricos,
colocam-se dúvidas sobre a autenticidade de algumas passagens, inclusive pelo
fato de que textos diferentes referem-se a um mesmo fato de maneira diversa. Na
carta de Pero Vaz de Caminha, por exemplo, é narrado que dois degredados
ficaram em terra, por ordem de Cabral, e que dois grumetes resolveram ficar
naquela terra, quando da partida das naus, por vontade própria. Na carta do
Piloto Anônimo – que muitos questionam ser de fato um piloto –, nada é dito
quanto aos dois grumetes. Quanto aos degredados que aqui ficaram, é narrado que
ambos tiveram que ser confortados pelos próprios índios, já que choravam
desconsolados. Caminha não se refere a esse fato, dando-nos a entender que os
degredados aceitaram a ordem sem nenhum questionamento. Em contrapartida, ambos
os relatos concordam sobre a inocência dos nativos em relação a sua nudez. Eles
não demonstram nenhuma vergonha em se mostrarem nus àqueles estrangeiros. Nem mesmo
as mulheres demonstram qualquer tipo de pudor. E o interessante de se notar é
que, embora venham de uma cultura onde a nudez é vista como algo vergonhoso,
inconcebível, não se nota nos relatos que os exploradores sentiram-se
incomodados com a nudez dos índios. Mostraram-se surpresos com a naturalidade e
a inocência com a qual os nativos exibiam sua nudez, mas em nenhum momento
pareceram incomodados ou chocados. Em contato com algo que, para os índios, era
natural, passaram a encarar esse fato como natural também, embora para a sua
cultura não o fosse.
Lendo os textos desse período,
podemos depreender dois pontos básicos: a preocupação dos cronistas em
descrever a nova terra a ser conquistada, seus frutos, seus animais, seus rios
e sua gente, de um lado; o assombro resultante da visão de um mundo diferente
do que já haviam visto, de outro. A descrição da terra tem um propósito bem
específico: fornecer elementos a El-Rei para que este pudesse decidir sobre um
possível processo de colonização da nova terra, sobre as possibilidades que
esta terra oferecia como fonte de riquezas para a Coroa. A descrição dos
índios, sua inocência e amabilidade, bem como o conhecimento que possuíam da
terra e a sua total integração com a natureza, pode servir como uma indicação
de que aquele povo poderia ser utilizado como mão-de-obra, sem muitas
dificuldades e sem ônus para a Coroa.
A descrição da floresta, dos
animais, das flores, dos frutos demonstra, além de uma fonte de informações das
possibilidades que aquela terra oferecia, devido às novidades que possuía em
abundância, o assombro do europeu diante de um mundo novo, desconhecido, que
impressiona pelo tamanho e exuberância, pelos mistérios que aquela imensa
muralha verde pode ocultar em suas entranhas. Temos aí a admiração pela
grandiosidade, o medo dos perigos ocultos, o respeito pelo desconhecido, a
excitação pelas possibilidades, elementos do Sublime, um conceito explorado por
Burke, no século XVIII, e utilizado soberbamente por Joseph Conrad em sua obra
“O coração das trevas”, o qual pode ser demonstrado nesta passagem do livro: “O
lugar parecia extraterreno. Estávamos habituado a vê-lo sob a forma de um
monstro agrilhoado e domado, mas ali – o que víamos ali era uma coisa
monstruosa e livre”. E esta parece ser a impressão que os cronistas têm da
nova terra: um lugar selvagem, indomado, poderoso. Diferente de tudo o que eles
já haviam visto em suas viagens e explorações. O desconhecido, ali, se fazia
presente de uma maneira inteiramente nova para os exploradores. E esse devia
ser o sentimento dos índios em relação aos homens brancos: a suntuosidade e
curiosidade de suas vestes, as naus imensas, as armas e enfeites desconhecidos dos
nativos. Um assombramento mútuo a dominar cada cultura.
O Sublime, embora à época ainda
não estivesse estruturado como conceito, marcaria o encontro do homem branco
europeu com o índio nativo da nova terra. Longe de ser um encontro de intenções
puramente mercantilista, o convívio do europeu com o índio teve implicações
outras que influenciou a formação da própria terra recém-descoberta. Tanto que
podemos observar em documentos e escritos dos jesuítas uma espécie de crítica
aos costumes adotados pelos europeus radicados na nova terra, os quais
pareceram amalgamar comportamentos europeus – tidos como ‘civilizados’ – com
comportamentos demonstrados pelos índios – os chamados ‘selvagens’, povos sem
‘cultura’. Os colonos radicados no Brasil passaram a ter relações com as índias
– e, posteriormente, com as negras –, praticaram a poligamia etc. A própria
terra, com seus novos produtos sendo exportados para a Europa, modificou
hábitos alimentares e comportamentais.
Temos, aí, o reconhecimento da
figura do ‘outro’. O índio, que teve a cultura do homem branco sendo-lhe
impingida aos poucos, perdendo pouco a pouco sua própria identidade; e o homem
branco, que teve que adaptar seus hábitos para as necessidades impostas por
aquela nova terra onde sua cultura não tinha ainda conseguido se impor. A
colônia, sendo explorada para lucro do europeu; e a metrópole, tendo que lidar
com a nova terra que tinha em seu poder.
Além disso, o europeu teve a sua
cultura, considerada civilizada e superior, confrontada com os povos tidos como
selvagens, tidos como uma cultura inferior ou, até mesmo, como povos sem
cultura. Contudo, alguns estudiosos perceberam traços de civilidade que não
eram encontrados mesmo em culturas européias. Além disso, alguns costumes
considerados bárbaros pelos europeus, encontraram equivalentes em sua própria
cultura. Enquanto condenavam alguns atos de ‘selvageria’ dos índios, perceberam
os mesmos elementos utilizados, por exemplo, na Santa Inquisição.
Quanto ao fato de serem
considerados literatura ou não, os textos de informação ainda suscitam debates.
É comum vermos esses textos inseridos, em livros sobre literatura, em um
período conhecido como Quinhentismo, assim como temos o período conhecido como
Seiscentismo ou Barroco. Muitos questionam o fato de esses textos de informação
serem considerados como literatura, por diversos fatores: eram documentos –
muitos oficiais, como a carta de Caminha – sobre as explorações que vários
povos fizeram com o objetivo de conquistar novas terras para suas respectivas
coroas; limitavam-se a descrever elementos da nova terra, tais como os índios,
a floresta, os rios etc.; seus autores eram escrivães, pilotos, historiadores
etc., estudiosos aparentemente sem pretensões literárias; seus autores eram
europeus, e não nativos da nova terra. Contudo, se observarmos atentamente
alguns documentos, veremos que determinadas partes não se limitam apenas a
narrar fatos e descrever a geografia do local. Um documento estritamente
oficial seria isento de linguagem poética, de senso de humor e de trocadilhos
maliciosos. Caminha, talvez até mesmo inconscientemente, deu um certo tom
“literário” à sua Carta, talvez inspirado pela grandiosidade do quadro que o
cercava. Além disso, a admiração e o deslumbramento de alguns trechos das
diversas crônicas escritas sobre o Brasil dão-lhes determinados elementos
encontrados apenas em obras consideradas como sendo literatura. Além disso, as
descrições que foram feitas sobre os índios serviram, mais tarde, de inspiração
para o Romantismo, que tinha como uma de suas características o nacionalismo.
Em oposição à literatura européia, onde os heróis nacionais são valentes
cavaleiros medievais, na literatura brasileira temos a figura do índio como
sendo o herói nacional. Além disso, temos toda a exuberância da natureza, que
os românticos ora apresentam como pertencente à pátria, ora apresentam como uma
espécie de refúgio à vida atribulada dos grandes centros urbanos de então.
Temos em José de Alencar um dos autores que recuperou o elemento indígena,
transformando-o em herói de seus romances: O Guarani, Iracema e Ubirajara.
Esses livros apresentam o índio em três momentos distintos: em Ubirajara,
a ação se passa em um período pré-cabralino, apresentando o índio em seu estado
mais puro, uma espécie de índio original; em Iracema, temos o contato do
índio, representado pela personagem-título, com o europeu, mostrando o que
seria a origem do povo que seria chamado de ‘brasileiro’; e em O Guarani,
o índio ‘europeizado’, fruto do contato com os colonizadores, principalmente
com os jesuítas. Para a composição de O Guarani, Alencar pesquisou
diversos documentos do período quinhentista. Posteriormente, temos em Mário de
Andrade e o seu Macunaíma, já no período Modernista, uma retomada do
elemento indígena como tema literário. Macunaíma é um anti-herói, índio que
nasce preto e vira branco, representado a própria mistura racial que determinou
o povo brasileiro, fruto dos cruzamentos entre índios, negros e brancos. Em
ambos os casos – em Alencar e em Andrade –, temos uma espécie de volta às
origens, um mergulho no período quinhentista como uma forma de resgatar a
figura do índio, o verdadeiro índio, e uma busca por uma identidade
nacional.
Contudo, é inegável a influência
da literatura portuguesa, em particular, e da européia, em geral, na formação
da nossa própria literatura, já que esta era a única literatura que conhecíamos
e que, portanto, era a única que poderia nos influenciar. Perguntado se outros
escritores influenciaram seus escritos, Milton Hatoum respondeu que todo
escritor é, antes de tudo, um leitor, portanto, não há como escapar a
influências externas. O mesmo ocorreu com nossa literatura. A busca de uma
literatura brasileira é, antes de tudo, a busca pelos elementos formadores de
nossa terra, as influências que recebemos dos vários povos que aqui aportaram.
E, mesmo em menor grau, essa sempre foi uma via de mão dupla.
Em um mundo que começou a se
globalizar a partir das longas viagens marítimas e do comércio entre países, a
figura do outro começou a se fazer cada vez mais presente.
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