segunda-feira, 15 de abril de 2013

A fundação do sertão: uma guerra no fim do mundo


O livro “Os sertões”, a obra mais importante de Euclides da Cunha, até hoje levanta  questionamentos sobre o seu caráter de obra científica ou de obra literária.
Ao ser enviado pelo jornal O Estado de São Paulo para fazer a cobertura jornalística da Guerra de Canudos, Euclides da Cunha da Cunha transformou-se em testemunha de um dos mais sangrentos capítulos da história brasileira, o que fez com que ele transformasse as anotações para as suas reportagens em livro. Jornalista e homem de ciências, Euclides da Cunha não pôde se furtar a descrever os fatos com a maior precisão e imparcialidade possíveis. Ao mesmo tempo, aproveitou a oportunidade para estudar o ambiente onde se encontrava, um Brasil novo que ele desconhecia e que sua parcela cientista não poderia deixar de analisar. O livro, assim, foi construído com base nas suas observações e separado em três partes: “A terra”, “O homem” e “A luta”.   
No capítulo “A terra” prevalecem as descrições de caráter geológico, climático e botânico, revelando um estudo físico da região; em “O homem”, prevalecem os estudos biológicos e sociológicos, uma análise do tipo humano; em “A luta”, é narrado o conflito desigual entre os sertanejos de Canudos e os soldados da República.       
É interessante notar que, apesar de ter sido escrito por um homem de ciências, encontram-se traços na construção de “Os sertões” que nos remetem ao modelo utilizado pela Bíblia. A Bíblia começa descrevendo a terra criada por Deus, com seus mares, plantas e animais, o que foi similarmente feito por Euclides da Cunha da Cunha ao descrever os rios – o Vaza-Barris, por exemplo – e os animais e plantas da região em “A terra”. Em seguida, a Bíblia narra a criação do primeiro homem, Adão, e da primeira mulher, Eva, os quais tiveram filhos e povoaram a terra. Na sequência de “Os sertões”, “O homem”, Euclides da Cunha trata dos homens que vivem no sertão. Nos narra um Paraíso no qual o sertão é transformado no período das chuvas que trazem a fertilidade. Porém, em seguida, vem a seca – o Pecado Original? – que os “expulsa” desse Paraíso e traz o sofrimento ao povo nordestino. Ainda nos valendo dessa analogia, o capítulo “A luta” seria a própria luta do homem que, ao ser expulso do Paraíso, teria que conquistar o pão com o suor do seu rosto, passando por várias vicissitudes e sofrimentos.    
“Os sertões” é uma obra paradoxal. Ao mesmo tempo que se utiliza de uma linguagem científica, analítica, principalmente nos capítulos “A terra” e “O homem”, apresenta trechos de um caráter quase poético, uma narração em tom épico como se observa em diversas passagens do capítulo “A luta”. O caráter científico da obra pode ser observado também no fato de que Euclides da Cunha se aproxima do sertão e de seus habitantes sem preconceitos. Ele possuía conhecimentos científicos sobre os fatores climáticos e geológicos, mas desconhecia completamente o sertão do ponto de vista social. Então, ele observa, analisa e, com base nos dados levantados, dá sua interpretação dos fatos. Ele não apresenta julgamentos. Os resistentes de Canudos não são descritos como heróis ou como bandidos. Ele não os idealiza nem os demoniza. Não são os destemidos heróis enfrentando a injustiça social representada pela República, nem os bandidos impiedosos que precisam ser destruídos. São homens simples, ignorantes e supersticiosos, cuja maioria não sabia o que estava enfrentando nem o porquê de estarem sendo combatidos. Para essa maioria, o exército republicano era o Demônio que vinha tentá-los e ao qual era preciso resistir a todo custo caso quisessem alcançar o Paraíso prometido ao lado de Deus. Quanto aos soldados – muitos também sertanejos –, eram, em sua maioria, homens simples e ignorantes, que estavam ali apenas cumprindo ordens e que não se davam ao trabalho de entender o que se passava por trás daquele conflito. No final das contas, eram iguais que se enfrentavam apenas por estarem em lados opostos. Aliás, muitos dos soldados, durante os combates travados contra os habitantes de Canudos, acabaram desertando do exército e se aliando a seus antigos oponentes.        



Euclides da Cunha manteve o tempo todo a plena consciência do lado ao qual ele pertencia – a elite, os vencedores do conflito. No entanto, ele procura mostrar o que realmente aconteceu, não se limitando a narrar a versão dos vencedores. Por esse fato, seu livro chegou a despertar o descontentamento de várias personalidades, principalmente dentro do exército, os quais tentaram desacreditar sua narração como sendo uma fantasia de quem não estava lá e não presenciou os fatos. Euclides da Cunha encontrou no interior do Brasil um homem sem história. O sertanejo vivia esquecido em detrimento dos habitantes do litoral. Enquanto no litoral as pessoas beneficiavam-se dos progressos tecnológicos e científicos, o homem do interior vivia em um estágio ainda bastante primitivo, á margem de todos os progressos e conhecimentos da época. Euclides da Cunha retrata o homem do interior do país sem a ingenuidade e a idealização dos românticos. Ele retratou um sertão do modo como ele o entendeu, analisado e dissecado de uma maneira científica. Um sertão estudado do ponto de vista geológico, antropológico, sociológico e psicológico. E também político. Euclides traçou o retrato de um país que, após passar pelo período de Colônia, Império e recém ingresso na República, ainda não havia se encontrado como nação. Um país que ainda precisava ser “descoberto”. A postura científica de Euclides da Cunha tentou traçar um quadro real e imparcial dos acontecimentos. Dessa forma, pode-se dizer que Euclides da Cunha “descobriu” esse mundo. Assim como a carta de Pero Vaz de Caminha pode ser considerada como a “certidão de nascimento” do Brasil, “Os sertões” pode ser visto como a “certidão de nascimento” do povo sertanejo. Ou, pelo menos, como o reconhecimento de uma existência até então ignorada por um país que insistia em não percebê-los.
“Os sertões” pode ser definido como um texto fundador. O livro apresenta uma das características mais marcantes de um texto considerado fundador: a não obediência aos limites impostos por um gênero. E, por seu caráter descritivo e analítico, marca um novo começo do pensamento social brasileiro.
Os termos técnicos utilizados por Euclides da Cunha, as descrições minuciosas da terra e do homem, demonstram a preocupação do estudioso diante de algo que ainda lhe é desconhecido. É claro que, como todo cientista, Euclides da Cunha tem as suas influências. A do sociológo polonês Gumplowicz é evidente. Porém, ao lado do caráter científico encontramos traços puramente literários. Euclides mescla trechos científicos com um quê de poesia em várias passagens do romance, em descrições que não se limitam a um detalhamento técnico sobre um evento. Isso se torna evidente em trechos como “A terra despertava triste. As aves tinham abandonado espavoridas aqueles ares varridos, havia um mês, de balas. A manhã surgia rutilante e muda”.(Tomo II: ‘A luta’, p. 228).
Uma outra característica que faz de “Os sertões” um livro fundador é uma espécie de procura por uma nacionalidade brasileira, algo que encontraremos posteriormente durante o movimento modernista, principalmente em livros como “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Euclides da Cunha afirmou o sertanejo como a essência do país. Isso fica evidente nos trechos em que ele narra a figura dos sertanejos encontrados mesmo entre as fileiras do exército republicano. O caboclo forte que se adapta aos rigores da terra, ao contrário do homem do litoral e sua sociedade calcada em elementos importados da Europa. Outra característica que aponta para o futuro é o fato de “Os sertões” ter sido uma espécie de antecipação ao que foi feito pelos escritores da segunda fase do modernismo, os quais escreveram obras que tiveram o sertão nordestino como personagem principal. E é sobre isso que Euclides da Cunha escreve. Mais do que narrar um conflito no interior do país, “Os sertões” nos mostra uma terra e um homem ainda desconhecidos e que, longe de estarem em conflito, vivem amalgamados por um destino em comum, para eles tão inevitável quanto o nascer do dia: a seca.  

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