terça-feira, 9 de abril de 2013

O determinismo e o poder da linguagem em “Vidas Secas”


No processo de busca de uma identidade nacional, de uma escrita ‘brasileira’ que se diferenciasse dos padrões portugueses que vigoravam entre os escritores brasileiros, vários movimentos buscaram alternativas que causassem essa ruptura literária entre os dois países. O Romantismo, por exemplo, buscou utilizar uma expressão mais coloquial, mais próxima do modo de falar do povo brasileiro. Porém, foi com a chegada do Modernismo que essa tendência se acentuou. Em 1930 ocorreu uma verdadeira explosão de criação ficcional na literatura brasileira. Os escritores desse período estavam preocupados com o questionamento direto da realidade, marcados por uma visão sociológica do meio. Esta tendência à literatura social, combinada com a descentralização cultural, deu lugar ao aparecimento de formas artísticas regionalistas, com destaque no Nordeste. Por isso é freqüente a expressão “romance regionalista de 30”, aplicada de forma genérica ao conjunto da produção nordestina da época. Surge, então, um equívoco quanto ao conceito de regionalismo pois, para ser classificado como ‘regional’ deve haver, além do tema, uma especificidade de linguagem e tratamento literário. Nesta perspectiva, o romance de Rachel de Queiroz, “O Quinze” (1930), pode ser considerado efetivamente regionalista na medida que o meio local e a realidade social e humana fixados no romance refletem uma vivência profunda da região. Em José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos encontram-se algumas das realizações mais bem sucedidas da ficção regionalista brasileira. “Vidas Secas” é uma obra que se insere no ciclo do romance regionalista nordestino desenvolvido ao longo dos anos 30, constituindo-se num dos marcos do neo-realismo na literatura brasileira.
Em Graciliano Ramos e suas obras o social não prevalece sobre o psicológico, embora não saia diminuído. Graciliano investiga o homem nas suas ligações com uma determinada matriz regional, mas focalizado principalmente no drama irreproduzível de cada destino.
É possível perceber uma linha divisória das tendências da ficção brasileira a partir da polaridade campo x cidade, que caracteriza, na prosa de ficção regionalista, dois distintos espaços que se prestam à ambientação dos conflitos dramáticos característicos de cada romance e, claro, dois distintos polos a partir dos quais a crítica social e a reivindicação de transformações sociais, políticas etc. é realizada: o campo, depositário de tradições tanto na mentalidade como na língua dos habitantes; e a cidade, centro do progresso material e do sucessivo abandono das tradições, sujeito a transformações. Este é o motivo pelo qual se diferencia do espaço rural o qual defende aspectos singulares de sua identidade como fator vital, separando-se assim, a ficção rural, por um lado, e a ficção urbana, por outro. A arte regionalista stricto sensu seria aquela que buscaria enfatizar os elementos diferenciais que caracterizariam uma região em oposição às demais ou à totalidade nacional. Este regionalismo literário é compreendido, pelos escritores e pelos críticos, de formas diversas, recorrendo desde a observação puramente geográfica até a complexa compreensão ecológica, sociológica, psicológica e linguística.
Todos esses elementos estão presentes na obra “Vidas secas”, publicada em 1938. Nela, um narrador externo conta a história de Fabiano e sua gente. O discurso indireto livre, porém, permite a Graciliano confundir narrador e personagem de modo a criar uma cumplicidade entre os dois, desfazendo a aparente neutralidade.
O método sociológico busca relacionar o homem com os outros homens e com a sua condição social. Sob este prisma, o meio possui uma grande influência sobre o comportamento dos homens e em como eles se relacionam entre si e com o próprio ambiente. Isso é algo preponderante em “Vidas secas”. Na obra, podemos observar a influência do ambiente na construção dos personagens e de suas personalidades. A história, que gira em torno de Fabiano e sua família, nos mostra pessoas que possuem uma grande dificuldade em se comunicar. A influência do meio, aqui, é visível. Fabiano e sua gente vivem em uma terra seca, um ambiente quase hostil. Nesse ambiente, o homem acaba tornando-se também seco. Suas vidas tornam-se tão secas quanto o ambiente que os cerca. O ambiente absorve os homens, amalgamam-se formando uma única entidade. A seca torna o ambiente árido, não permite o desenvolvimento da vida vegetal, expulsa e mata homens e animais, indistintamente. Isso faz com que homens e animais acabem por perder suas características, aproximando-se em uma tentativa de tentarem, juntos, a sobrevivência. É interessante notar um fato curioso que ocorre durante o desenrolar da trama: enquanto os homens passam por um processo de zoomorfia, animalizando-se, a cachorra Baleia passa por um processo quase inverso, ‘humanizando-se’ por meio do convívio com a família e com a proximidade que a seca os obriga a ter durante o processo de retirada. Em determinados momentos, Baleia apresenta sentimentos e pensamentos de caráter nitidamente humano demonstrando uma personalidade que se mistura com a dos filhos de Fabiano, por exemplo, quando os três brincam no lamaçal sem que se consiga distinguir uns dos outros. Esse processo fica ainda mais evidenciado quando se nota que a cachorra Baleia possui um nome que a personaliza, enquanto os meninos são tratados apenas como ‘menino mais velho’ e ‘menino mais novo’, ou simplesmente ‘menino’ ou ‘filho’.
O processo de animalização dos personagens conta, também, com outro fator. Além de sofrerem com a seca, também há a opressão e a exploração por parte do dono da fazenda. Neste romance, há uma linha bem nítida entre quem oprime e quem é oprimido. Assim como os animais, que não têm outra opção a não ser se submeter às vontades dos homens, Fabiano e sua família são oprimidos, e aceitam passivamente essa opressão por não vislumbrarem uma outra opção de vida. A obra trata de um grave problema social que é a apropriação da terra que, junto com a seca, acaba por expulsar os sertanejos de seu “habitat”, equiparando-os aos animais. A família de Fabiano, assim como os demais nordestinos, vive uma vida miserável e sem perspectivas de mudanças.
“Vidas secas” é um romance que se insere no realismo por exprimir diversas características presentes neste movimento. Entre elas temos a questão do determinismo, presente em toda a obra e do qual Fabiano e sua família não parecem possuir forças para escapar. Fabiano vê-se impotente, perdido no meio de situações as quais ele não tem forças para combater e, o que é pior, não possui conhecimento dessas situações. A inconsciência de Fabiano é um fator preponderante para que ele não consiga se libertar.    
Fabiano e sua família são personagens que vivem uma vida fragmentada, influenciados que são pelo ambiente onde vivem. As reações dos personagens se produzem de fora para dentro, já que eles vivem à mercê de um mundo onde eles nada têm o que fazer, a não ser seguir o ritmo da seca, do patrão, da autoridade.
“Vidas Secas” é um romance construído com o que se poderia chamar de um arranjo literário aberto: os seus capítulos são feitos de uma forma que permitem uma leitura autônoma, quase como se tratasse de um livro de contos, ordenados por justaposição. Isso levou muitos estudiosos a afirmar que o livro é um “romance desmontável”, por permitir várias leituras, quase como um painel com quadros diversificados que acabam por convergir pra um mesmo drama. Porém, se analisarmos a obra como um todo, podemos observar que ela possui coesão entre as suas diversas partes, coesão esta derivada do tema ao qual alude, além da organicidade da concepção.
Fabiano e os seus, na sua jornada à mercê dos caprichos da seca, enfrentam os mesmos problemas, passam pelas mesmas situações. Suas vidas e seus dramas se entrelaçam de tal maneira que dir-se-ia tratar-se de um único elemento fragmentado em partes distintas, porém homogêneas. Isso pode ser observado (a fragmentação dos personagens, tanto individualmente quanto em família) pelo fato de que cada capítulo enfoca um dos elementos que formam o quadro geral: Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, Baleia. Cada qual com seu pequeno drama particular que se entrelaça a um drama maior: a seca. Porém, “Vidas secas” não é um romance da seca. A seca serve como pano de fundo para a representação do humano a mercê de forças poderosas as quais ele não entende e não consegue controlar. As pessoas mudam-se para lugares distantes – porém, semelhantes na desolação e na falta de esperança – atrás de um sonho: encontrar uma terra onde possam encontrar um trabalho que possa lhes garantir a subsistência. Sua única ambição é, praticamente, sobreviver.   
Fabiano é um homem do sertão. Entrosa-se com a desolação e vazio do meio rural, enquanto, na cidade, sente-se como um estrangeiro, perdido entre convenções as quais ele não consegue compreender. A cidade assusta, desorienta, oprime. Fabiano sente-se como um animal tirado de seu ambiente e colocado em um local desconhecido. O trato com as pessoas, principalmente as diferentes do seu meio familiar, ao qual ele já está acostumado, exige um nível de comunicação ao qual ele não está habituado, algo que ele reconhece necessário, mas que é difícil para ele. Vê-se essa situação nos seus confrontos com o patrão e o soldado amarelo, por exemplo. Fabiano, que no trabalho com os animais e os serviços da fazenda sente-se tão seguro de si, demonstra-se humilhado e diminuído diante daqueles que ele vê como uma personificação do Poder, um poder o qual ele não compreende muito bem, mas que reconhece e teme. Ele se vê como um dos animais da fazenda, dos quais o dono é proprietário, tendo o direito de dispor deles da forma que bem entender.
Esse sentimento leva-o a uma perda da humanidade, um processo de zoomorfia que se reflete nos seus pensamentos, quando se compara aos animais e admite sentir-se à vontade entre eles, e a própria dificuldade que Fabiano demonstra em relação ao uso da língua. A linguagem é um dos principais elementos que nos distinguem dos animais. Fabiano fala pouco, exprime-se através de gestos e grunhidos, não encontra as palavras quando precisa delas. Como um cão, ou como gado sendo tangido para o abatedouro, abaixa a cabeça e aceita tudo o que lhe fazem, mesmo quando reconhece a injustiça daquelas ações.            
Do ponto de vista sociológico a obra nos mostra a relação de classes: o patrão de Fabiano e o soldado amarelo, os quais refletem a classe dominante, o Poder, a autoridade. Há também a figura de seu Tomás da bolandeira, que representa outro tipo de poder, o da classe intelectual. Por fim, Fabiano e sua gente refletem a classe dominada, subjugada, receosa, desconhecedora de seus direitos. Fabiano demonstra um profundo respeito e temor pelos poderosos. Reconhece os abusos e o roubo que seu patrão pratica contra ele, mas não encontra forças para se revoltar, considerando que as coisas sempre foram assim, e devem continuar assim. O mesmo se aplica ao soldado amarelo. Ao ser preso, Fabiano percebe a maneira arbitrária pela qual a prisão se efetuou, revolta-se contra o fato, mas não encontra palavras para exprimir sua indignação, consolando-se no fato de que “apanhar do governo não é humilhação”.
O soldado amarelo e o dono da fazenda representam duas formas distintas de poder e opressão. O soldado amarelo representa o poder armado. Mesmo sendo tão rústico e miserável quanto Fabiano, impõe-se pelo poder que a ‘farda’ lhe confere, um poder instituído e que serve aos ricos e poderosos que os mantêm. Já o dono da fazenda representa o poder econômico. 
É o poder econômico que oprime, que escraviza o sertanejo tirando-lhe a própria humanidade. Representa uma estrutura social consolidada e imobilizada. Uma estrutura opressora que, aliada a outros elementos, acaba por determinar o nomadismo dos retirantes.
Em relação a seu Tomás da bolandeira, Fabiano demonstra uma tensão entre dois polos: a indiferença em relação à cultura demonstrada por seu Tomás e o posterior reconhecimento de que ela é necessária e pode ser um agente de mudança – a própria mudança que eles fazem, no final, indo para uma outra cidade e com o pensamento de colocar os filhos em uma escola, uma esperança de ruptura com a situação miserável na qual viviam. Tensão, aliás, que permeia toda a obra. Fabiano é um homem dividido entre o moderno e o antigo. Aceita algumas soluções modernas, bem como recorre à tradição de seus pais e avós. Um exemplo bem claro desse fato é quando Fabiano tenta curar um bezerro no “rasto”.
Sinhá Vitória representa uma espécie de contraponto de Fabiano. Rústica assim como ele, ela, entretanto, se mostra mais astuta e menos resignada com as injustiças com as quais sofrem. Ao contrário de Fabiano, que se contenta apenas em sobreviver, sinhá Vitória tem aspirações, como o sonho de possuir uma “cama de lastro de couro”. Além de representar um conforto maior do que a cama de varas, a cama de lastro de couro representa o seu desejo de se inserir em uma espécie de cidadania, uma diferenciação entre ela e os animais com os quais convivem. Além disso, sinhá Vitória possui uma maior desenvoltura no exercício da linguagem, o que causa certa admiração de Fabiano, que a considera mais inteligente do que ele próprio.
Já os meninos são um caso à parte. Para começar, a ausência de nomes – como já foi referido antes, são tratados simplesmente como ‘menino mais velho’ e ‘menino mais novo’ – revela uma despersonalização que os caracteriza, despersonalização essa decorrente da condição social na qual vivem. São figuras anônimas, carentes de importância dentro daquele meio.
O ‘menino mais novo’ sonha em ser como o pai, representando a continuação de algo personalizado pelo pai, pelo avô e pelos que vieram antes deles. É a continuidade daqueles que não veem outra opção para suas vidas. Já o ‘menino mais velho’ demonstra curiosidade pelo significado das palavras, como no caso da palavra ‘Inferno”, a qual ele ouviu e não encontrou ninguém que lhe explicasse o significado. Isso demonstra o poder das palavras como uma possibilidade de ocasionar mudanças. O desejo de aprender, de conhecer algo mais além dos limites estreitos dentro dos quais vive.
Enquanto os humanos passam por um processo de zoomorfia, a cachorra Baleia faz o caminho inverso. Diferentemente dos meninos, ela possui um nome que a personaliza. Circula pela família como se fosse um dos seus membros. Brinca com os meninos como se fosse uma espécie de irmã. O ‘menino mais velho’, por exemplo, quando leva um cascudo de sinhá Vitória por insistir em saber o significado da palavra inferno, encontra consolo junto à cachorra. Ela se revolta com os pontapés que leva, mas, assim como Fabiano, considera os sofrimentos como algo natural.
Diante disso, podemos observar que, apesar de ser uma obra de 1938, continua atual diante do retrato que nos mostra de uma sociedade às voltas com o flagelo da seca que obriga os nordestinos a abandonarem seus lares à procura de um lugar onde possam garantir sua sobrevivência. Mostra-nos, também, as relações sociais que, longe de se restringirem ao Nordeste brasileiro, estão presentes em diversos pontos diferentes, seja o sertão nordestino ou uma favela em um grande centro urbano, onde as pessoas vivem em condições sub-humanas, destituídas de sua cidadania e de sua humanidade.
O sertanejo, ainda hoje, vive na vã esperança de uma mudança que nunca chega, sendo obrigado a mover-se seguindo os caprichos da seca e dos poderes que os alijam do mínimo necessário para uma sobrevivência com dignidade.

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