No processo de busca de uma
identidade nacional, de uma escrita ‘brasileira’ que se diferenciasse dos
padrões portugueses que vigoravam entre os escritores brasileiros, vários
movimentos buscaram alternativas que causassem essa ruptura literária entre os
dois países. O Romantismo, por exemplo, buscou utilizar uma expressão mais
coloquial, mais próxima do modo de falar do povo brasileiro. Porém, foi com a
chegada do Modernismo que essa tendência se acentuou. Em 1930 ocorreu uma
verdadeira explosão de criação ficcional na literatura brasileira. Os
escritores desse período estavam preocupados com o questionamento direto da
realidade, marcados por uma visão sociológica do meio. Esta tendência à
literatura social, combinada com a descentralização cultural, deu lugar ao
aparecimento de formas artísticas regionalistas, com destaque no Nordeste. Por
isso é freqüente a expressão “romance regionalista de 30”, aplicada de forma
genérica ao conjunto da produção nordestina da época. Surge, então, um equívoco
quanto ao conceito de regionalismo pois, para ser classificado como ‘regional’
deve haver, além do tema, uma especificidade de linguagem e tratamento
literário. Nesta perspectiva, o romance de Rachel de Queiroz, “O Quinze” (1930),
pode ser considerado efetivamente regionalista na medida que o meio local e a
realidade social e humana fixados no romance refletem uma vivência profunda da
região. Em José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos encontram-se
algumas das realizações mais bem sucedidas da ficção regionalista brasileira. “Vidas
Secas” é uma obra que se insere no ciclo do romance regionalista nordestino
desenvolvido ao longo dos anos 30, constituindo-se num dos marcos do
neo-realismo na literatura brasileira.
Em Graciliano Ramos e suas obras o
social não prevalece sobre o psicológico, embora não saia diminuído. Graciliano
investiga o homem nas suas ligações com uma determinada matriz regional, mas
focalizado principalmente no drama irreproduzível de cada destino.
É possível perceber uma linha
divisória das tendências da ficção brasileira a partir da polaridade campo x
cidade, que caracteriza, na prosa de ficção regionalista, dois distintos
espaços que se prestam à ambientação dos conflitos dramáticos característicos
de cada romance e, claro, dois distintos polos a partir dos quais a crítica
social e a reivindicação de transformações sociais, políticas etc. é realizada:
o campo, depositário de tradições tanto na mentalidade como na língua dos
habitantes; e a cidade, centro do progresso material e do sucessivo abandono
das tradições, sujeito a transformações. Este é o motivo pelo qual se
diferencia do espaço rural o qual defende aspectos singulares de sua identidade
como fator vital, separando-se assim, a ficção rural, por um lado, e a ficção
urbana, por outro. A arte regionalista stricto sensu seria aquela que buscaria
enfatizar os elementos diferenciais que caracterizariam uma região em oposição
às demais ou à totalidade nacional. Este regionalismo literário é compreendido,
pelos escritores e pelos críticos, de formas diversas, recorrendo desde a
observação puramente geográfica até a complexa compreensão ecológica,
sociológica, psicológica e linguística.
Todos esses elementos estão
presentes na obra “Vidas secas”, publicada em 1938. Nela, um narrador externo
conta a história de Fabiano e sua gente. O discurso indireto livre, porém,
permite a Graciliano confundir narrador e personagem de modo a criar uma
cumplicidade entre os dois, desfazendo a aparente neutralidade.
O método sociológico busca
relacionar o homem com os outros homens e com a sua condição social. Sob este
prisma, o meio possui uma grande influência sobre o comportamento dos homens e
em como eles se relacionam entre si e com o próprio ambiente. Isso é algo
preponderante em “Vidas secas”. Na obra, podemos observar a influência do
ambiente na construção dos personagens e de suas personalidades. A história,
que gira em torno de Fabiano e sua família, nos mostra pessoas que possuem uma
grande dificuldade em se comunicar. A influência do meio, aqui, é visível. Fabiano
e sua gente vivem em uma terra seca, um ambiente quase hostil. Nesse ambiente,
o homem acaba tornando-se também seco. Suas vidas tornam-se tão secas quanto o
ambiente que os cerca. O ambiente absorve os homens, amalgamam-se formando uma
única entidade. A seca torna o ambiente árido, não permite o desenvolvimento da
vida vegetal, expulsa e mata homens e animais, indistintamente. Isso faz com
que homens e animais acabem por perder suas características, aproximando-se em
uma tentativa de tentarem, juntos, a sobrevivência. É interessante notar um
fato curioso que ocorre durante o desenrolar da trama: enquanto os homens
passam por um processo de zoomorfia, animalizando-se, a cachorra Baleia passa
por um processo quase inverso, ‘humanizando-se’ por meio do convívio com a
família e com a proximidade que a seca os obriga a ter durante o processo de
retirada. Em determinados momentos, Baleia apresenta sentimentos e pensamentos
de caráter nitidamente humano demonstrando uma personalidade que se mistura com
a dos filhos de Fabiano, por exemplo, quando os três brincam no lamaçal sem que
se consiga distinguir uns dos outros. Esse processo fica ainda mais evidenciado
quando se nota que a cachorra Baleia possui um nome que a personaliza, enquanto
os meninos são tratados apenas como ‘menino mais velho’ e ‘menino mais novo’,
ou simplesmente ‘menino’ ou ‘filho’.
O
processo de animalização dos personagens conta, também, com outro fator. Além
de sofrerem com a seca, também há a opressão e a exploração por parte do dono
da fazenda. Neste romance, há uma linha bem nítida entre quem oprime e quem é
oprimido. Assim como os animais, que não têm outra opção a não ser se submeter
às vontades dos homens, Fabiano e sua família são oprimidos, e aceitam
passivamente essa opressão por não vislumbrarem uma outra opção de vida. A obra
trata de um grave problema social que é a apropriação da terra que, junto com a
seca, acaba por expulsar os sertanejos de seu “habitat”, equiparando-os aos animais.
A família de Fabiano, assim como os demais nordestinos, vive uma vida miserável
e sem perspectivas de mudanças.
“Vidas
secas” é um romance que se insere no realismo por exprimir diversas
características presentes neste movimento. Entre elas temos a questão do
determinismo, presente em toda a obra e do qual Fabiano e sua família não
parecem possuir forças para escapar. Fabiano vê-se impotente, perdido no meio
de situações as quais ele não tem forças para combater e, o que é pior, não possui
conhecimento dessas situações. A inconsciência de Fabiano é um fator
preponderante para que ele não consiga se libertar.
Fabiano e sua família são
personagens que vivem uma vida fragmentada, influenciados que são pelo ambiente
onde vivem. As reações dos personagens se produzem de fora para dentro, já que
eles vivem à mercê de um mundo onde eles nada têm o que fazer, a não ser seguir
o ritmo da seca, do patrão, da autoridade.
“Vidas
Secas” é um romance construído com o que se poderia chamar de um arranjo
literário aberto: os seus capítulos são feitos de uma forma que permitem uma
leitura autônoma, quase como se tratasse de um livro de contos, ordenados por
justaposição. Isso levou muitos estudiosos a afirmar que o livro é um “romance
desmontável”, por permitir várias leituras, quase como um painel com quadros
diversificados que acabam por convergir pra um mesmo drama. Porém, se
analisarmos a obra como um todo, podemos observar que ela possui coesão entre
as suas diversas partes, coesão esta derivada do tema ao qual alude, além da
organicidade da concepção.
Fabiano
e os seus, na sua jornada à mercê dos caprichos da seca, enfrentam os mesmos
problemas, passam pelas mesmas situações. Suas vidas e seus dramas se
entrelaçam de tal maneira que dir-se-ia tratar-se de um único elemento
fragmentado em partes distintas, porém homogêneas. Isso pode ser observado (a
fragmentação dos personagens, tanto individualmente quanto em família) pelo
fato de que cada capítulo enfoca um dos elementos que formam o quadro geral:
Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, Baleia. Cada
qual com seu pequeno drama particular que se entrelaça a um drama maior: a
seca. Porém, “Vidas secas” não é um romance da seca. A seca serve como pano de
fundo para a representação do humano a mercê de forças poderosas as quais ele
não entende e não consegue controlar. As pessoas mudam-se para lugares
distantes – porém, semelhantes na desolação e na falta de esperança – atrás de
um sonho: encontrar uma terra onde possam encontrar um trabalho que possa lhes
garantir a subsistência. Sua única ambição é, praticamente, sobreviver.
Fabiano
é um homem do sertão. Entrosa-se com a desolação e vazio do meio rural,
enquanto, na cidade, sente-se como um estrangeiro, perdido entre convenções as
quais ele não consegue compreender. A cidade assusta, desorienta, oprime.
Fabiano sente-se como um animal tirado de seu ambiente e colocado em um local
desconhecido. O trato com as pessoas, principalmente as diferentes do seu meio
familiar, ao qual ele já está acostumado, exige um nível de comunicação ao qual
ele não está habituado, algo que ele reconhece necessário, mas que é difícil
para ele. Vê-se essa situação nos seus confrontos com o patrão e o soldado
amarelo, por exemplo. Fabiano, que no trabalho com os animais e os serviços da
fazenda sente-se tão seguro de si, demonstra-se humilhado e diminuído diante
daqueles que ele vê como uma personificação do Poder, um poder o qual ele não
compreende muito bem, mas que reconhece e teme. Ele se vê como um dos animais
da fazenda, dos quais o dono é proprietário, tendo o direito de dispor deles da
forma que bem entender.
Esse
sentimento leva-o a uma perda da humanidade, um processo de zoomorfia que se
reflete nos seus pensamentos, quando se compara aos animais e admite sentir-se
à vontade entre eles, e a própria dificuldade que Fabiano demonstra em relação
ao uso da língua. A linguagem é um dos principais elementos que nos distinguem
dos animais. Fabiano fala pouco, exprime-se através de gestos e grunhidos, não
encontra as palavras quando precisa delas. Como um cão, ou como gado sendo
tangido para o abatedouro, abaixa a cabeça e aceita tudo o que lhe fazem, mesmo
quando reconhece a injustiça daquelas ações.
Do ponto de vista sociológico a
obra nos mostra a relação de classes: o patrão de Fabiano e o soldado amarelo,
os quais refletem a classe dominante, o Poder, a autoridade. Há também a figura
de seu Tomás da bolandeira, que representa outro tipo de poder, o da classe
intelectual. Por fim, Fabiano e sua gente refletem a classe dominada,
subjugada, receosa, desconhecedora de seus direitos. Fabiano demonstra um
profundo respeito e temor pelos poderosos. Reconhece os abusos e o roubo que
seu patrão pratica contra ele, mas não encontra forças para se revoltar,
considerando que as coisas sempre foram assim, e devem continuar assim. O mesmo
se aplica ao soldado amarelo. Ao ser preso, Fabiano percebe a maneira
arbitrária pela qual a prisão se efetuou, revolta-se contra o fato, mas não
encontra palavras para exprimir sua indignação, consolando-se no fato de que
“apanhar do governo não é humilhação”.
O soldado amarelo e o dono da
fazenda representam duas formas distintas de poder e opressão. O soldado
amarelo representa o poder armado. Mesmo sendo tão rústico e miserável quanto
Fabiano, impõe-se pelo poder que a ‘farda’ lhe confere, um poder instituído e
que serve aos ricos e poderosos que os mantêm. Já o dono da fazenda representa
o poder econômico.
É
o poder econômico que oprime, que escraviza o sertanejo tirando-lhe a própria
humanidade. Representa uma estrutura social consolidada e imobilizada. Uma
estrutura opressora que, aliada a outros elementos, acaba por determinar o nomadismo
dos retirantes.
Em relação a seu Tomás da
bolandeira, Fabiano demonstra uma tensão entre dois polos: a indiferença em
relação à cultura demonstrada por seu Tomás e o posterior reconhecimento de que
ela é necessária e pode ser um agente de mudança – a própria mudança que eles
fazem, no final, indo para uma outra cidade e com o pensamento de colocar os
filhos em uma escola, uma esperança de ruptura com a situação miserável na qual
viviam. Tensão, aliás, que permeia toda a obra. Fabiano é um homem dividido
entre o moderno e o antigo. Aceita algumas soluções modernas, bem como recorre
à tradição de seus pais e avós. Um exemplo bem claro desse fato é quando
Fabiano tenta curar um bezerro no “rasto”.
Sinhá Vitória representa uma
espécie de contraponto de Fabiano. Rústica assim como ele, ela, entretanto, se
mostra mais astuta e menos resignada com as injustiças com as quais sofrem. Ao
contrário de Fabiano, que se contenta apenas em sobreviver, sinhá Vitória tem
aspirações, como o sonho de possuir uma “cama de lastro de couro”. Além de
representar um conforto maior do que a cama de varas, a cama de lastro de couro
representa o seu desejo de se inserir em uma espécie de cidadania, uma
diferenciação entre ela e os animais com os quais convivem. Além disso, sinhá
Vitória possui uma maior desenvoltura no exercício da linguagem, o que causa
certa admiração de Fabiano, que a considera mais inteligente do que ele
próprio.
Já os meninos são um caso à parte.
Para começar, a ausência de nomes – como já foi referido antes, são tratados
simplesmente como ‘menino mais velho’ e ‘menino mais novo’ – revela uma
despersonalização que os caracteriza, despersonalização essa decorrente da
condição social na qual vivem. São figuras anônimas, carentes de importância
dentro daquele meio.
O ‘menino mais novo’ sonha em ser
como o pai, representando a continuação de algo personalizado pelo pai, pelo
avô e pelos que vieram antes deles. É a continuidade daqueles que não veem
outra opção para suas vidas. Já o ‘menino mais velho’ demonstra curiosidade
pelo significado das palavras, como no caso da palavra ‘Inferno”, a qual ele
ouviu e não encontrou ninguém que lhe explicasse o significado. Isso demonstra
o poder das palavras como uma possibilidade de ocasionar mudanças. O desejo de
aprender, de conhecer algo mais além dos limites estreitos dentro dos quais
vive.
Enquanto os humanos passam por um
processo de zoomorfia, a cachorra Baleia faz o caminho inverso. Diferentemente
dos meninos, ela possui um nome que a personaliza. Circula pela família como se
fosse um dos seus membros. Brinca com os meninos como se fosse uma espécie de
irmã. O ‘menino mais velho’, por exemplo, quando leva um cascudo de sinhá
Vitória por insistir em saber o significado da palavra inferno, encontra
consolo junto à cachorra. Ela se revolta com os pontapés que leva, mas, assim
como Fabiano, considera os sofrimentos como algo natural.
Diante disso, podemos observar
que, apesar de ser uma obra de 1938, continua atual diante do retrato que nos
mostra de uma sociedade às voltas com o flagelo da seca que obriga os
nordestinos a abandonarem seus lares à procura de um lugar onde possam garantir
sua sobrevivência. Mostra-nos, também, as relações sociais que, longe de se
restringirem ao Nordeste brasileiro, estão presentes em diversos pontos
diferentes, seja o sertão nordestino ou uma favela em um grande centro urbano,
onde as pessoas vivem em condições sub-humanas, destituídas de sua cidadania e
de sua humanidade.
O sertanejo, ainda hoje,
vive na vã esperança de uma mudança que nunca chega, sendo obrigado a mover-se
seguindo os caprichos da seca e dos poderes que os alijam do mínimo necessário
para uma sobrevivência com dignidade.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente sua análise
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