terça-feira, 2 de abril de 2013

A dicotomia entre Tradição e Modernidade


Na época ‘moderna’ em que vivemos, cheia de ‘modernidades’ que logo se tornam obsoletas devido à rapidez com que as novidades surgem, temos uma tendência a torcer o nariz para as coisas ‘antigas’ – mesmo que esse antigo se refira apenas a quinze anos atrás. O negócio agora é ser ‘moderno’, estar antenado com as coisas ‘modernas’. Não existe um meio termo: ou se é moderno ou se é antiquado.
O termo ‘moderno’ passou a ser usado de uma forma tão indiscriminada que se tornou um pouco complicado defini-lo. Pessoas e produtos ostentam o rótulo ‘moderno’ como uma forma de sobrevivência. Ser antiquado, ou não ser ‘moderno’, acaba se transformando em um atestado de óbito, algo a ser rejeitado. Ser antigo é não ter mais utilidade. Moderno confunde-se com atual; antigo confunde-se com tradição. Tradicionalista e conservador tornaram-se dois dos piores epítetos que algo ou alguém pode receber. Afinal, ser Moderno é romper com a Tradição. Ser Moderno é não ter Tradição.
Literariamente, esse conceito se aplica a vários estilos. O Barroco, por exemplo. Por sinal, já vi o termo barroco sendo aplicado a algo que alguém queria definir como sendo antigo, ultrapassado. No Barroco, o conflito demonstrado pelos artistas do período, um sentimento que parecia ser o de um deslocamento em relação a sua ‘modernidade’, realçou ainda mais essa característica de algo fora da modernidade. Afinal, o Barroco seria um retrocesso após o Renascimento? O Barroco, assim como todos os estilos literários, refletiu o seu tempo, mas, também, questionou-o, criticou-o. Afinal, o período no qual surgiu o Barroco foi um período dicotômico, de pensamentos opostos que lutavam por seu espaço. De um lado, a Reforma protestante rompendo com pensamentos seculares e desprovidos de lógica, a razão do cientificismo começando a se impor sobre as superstições; de outro, a Contra-Reforma católica tentando restabelecer seu status quo, a razão cedendo lugar ao obscurantismo. Razão versus superstição. Ciência versus religião. Homem versus Deus. O Barroco, embora pareça se contrapor ao Renascimento, acabou herdando alguns traços deste. Dessa forma, o Barroco foi ‘Moderno” ou um retrocesso? Os artistas barrocos foram modernos ou estavam apenas expressando o pensamento do seu tempo?
Para responder a essa questão, temos primeiro que rever o termo ‘moderno’. Afinal, ‘moderno’ seria apenas o tempo presente ou futuro, ou o passado pode ter sido ‘moderno’? Moderno e tradição são antagônicos? Pode haver tradição na modernidade e vice-versa?
Conforme Otávio Paz, em seu “Filhos do barro”, “o moderno é uma tradição. Uma tradição feita de interrupções, em que cada ruptura é um começo”. 
 Esta asserção de Otávio Paz pode ser constatada em vários momentos pelos quais passou a literatura. O Arcadismo, por exemplo, que foi uma ruptura com o Barroco, nada mais foi do que um retorno às idéias clássicas. Da mesma forma, em outros movimentos literários podemos encontrar elementos utilizados por movimentos anteriores. O moderno, nesse caso, nada mais seria do que uma modificação de idéias utilizadas anteriormente. Assim, ainda de acordo com Otávio Paz, o moderno deu-se “não porque seus autores tenham negado o estilo antigo, mas porque oferecem novas e surpreendentes combinações dos mesmo elementos”.
Analisemos, por exemplo, o “Sermão de Santo Antônio”, do padre Antônio Vieira, e poemas de Gregório de Matos, dois dos mais destacados escritores do seu tempo.
Vieira utiliza-se, de forma magistral, de elementos tirados da Bíblia para ilustrar seus sermões. Para tanto, utiliza-se da visão da religião católica, a qual ele representa. Em um período onde a Reforma Protestante questionava dogmas e posturas da religião católica – Martinho Lutero, que foi um dos iniciadores do movimento, foi ele próprio um monge católico, o que já seria uma forma de ruptura com a Tradição –, Vieira recorria à Tradição para ilustrar seus sermões. Entretanto, Vieira foi, a seu modo, um questionador, não da religião católica, mas da postura que alguns elementos da religião ostentavam. Seus sermões, ao contrário da poesia de Anchieta, por exemplo, fugiam do discurso estritamente doutrinário, apoiado apenas nos dogmas e doutrinas católicas, buscando firmar-se em argumentos lógicos e racionais, os quais seriam a tônica do Iluminismo, posteriormente. Agindo assim, estava sendo questionador, rompendo com o modelo tradicional. Estava sendo ‘moderno’. Essa ambiguidade de Vieira pode ser constatada no próprio “Sermão de Santo Antônio”. Em um dos trechos do sermão, Vieira cita o evangelista Mateus (Mt 5, 14) quando escreve ‘Vos estis lux mundi’. Apóia-se ainda na Bíblia quando diz que Santo Antônio auto-intitula-se ‘o sal da terra’ (Mt 5, 13). Contudo, uma leitura atenta do “Sermão de Santo Antônio” mostra-nos as críticas que Vieira faz a membros da sociedade da época, bem como a membros da Igreja Católica. Vale ressaltar que Vieira não criticava a Igreja como instituição, e sim determinados elementos que não se comportavam de uma maneira adequada. Uma das partes do “Sermão de Santo Antônio” deixa bem clara essa posição: “Tanta é a imunidade das pessoas e bens eclesiásticos; mas estamos em tempo em que é necessário cederem de sua imunidade, para socorrerem a nossa necessidade”.
 Já Gregório de Matos, nascido no Brasil, utilizou-se de três tipos de poemas para compor o quadro social de sua época: sacro, satírico e lírico.
Gregório de Matos é um exemplo de como se pode misturar a Tradição e o Moderno em um mesmo escritor. Religioso, ele escreveu diversos poemas sacros valendo-se dos princípios católicos dominantes na colônia. Seus poemas sacros refletem uma tradição que se mantinha na colônia desde o Quinhentismo, principalmente através dos poemas de José de Anchieta. Os poemas sacros de Gregório de Matos são voltados para as questões religiosas e, a exemplo dos sermões de Vieira, exaltam Deus e a religião católica. Ao mesmo tempo, seus poemas satíricos são mordazes nas críticas a alguns elementos das fileiras eclesiásticas, pessoas e hábitos da sociedade. 
Assim, vemos que tanto Vieira quanto Gregório de Matos encarnam a dicotomia presente no Barroco. Ambos refletem o conservadorismo nos seus sermões e poemas quando exaltam a visão católica de Deus, já que as idéias da Reforma Protestante ainda não haviam tido penetração no Brasil. Concomitantemente a isso, ambos demonstram um grande espírito crítico e visão política ao relatar fatos que acontecem na colônia. A visão crítica e o uso da razão – veja-se a lucidez de Vieira ao analisar elementos políticos e, até mesmo, o uso que alguns padres faziam da religião –, que seriam marcas de um período posterior, já estavam presentes nos escritos desses dois autores.
O Barroco, longe de ser apenas um hiato entre o Renascimento e o Neoclassicismo, lançou as bases do que viria a ser o pensamento dominante em períodos posteriores: o Homem questionando-se sobre sua missão e lugar no mundo, questionando a religião (Vieira e Matos criticavam alguns membros do clero), discutindo a política. Paradoxalmente, exaltava posturas que não condiziam com um pensamento racional, lógico. Assim, podemos dizer que o Barroco foi um estilo que marcou uma transição. Representou a defesa de um arcaísmo ao mesmo tempo em que lançou as bases de um pensamento moderno. Dessa maneira, em seu bojo, o Barroco foi um estilo extremamente paradoxal. E o paradoxal é uma marca da “modernidade”.

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