segunda-feira, 29 de abril de 2013

O Maracá é nosso!!! – Nosso, de quem?


Na tarde do último Sábado, o Maracanã passou por um evento-teste. Foi realizado um jogo entre “Amigos do Ronaldo” X “Amigos do Bebeto” (leia-se, Amigos do Comitê Organizador da Copa ou, mais simplesmente, Amigos do Marin). O evento não foi aberto ao público, contando apenas com os operários que participaram da (re)construção do estádio, além dos seus familiares.
Antes do jogo, ouviu-se o indefectível “o Maraca é nosso”, gritado pelos já referidos operários e seus familiares. “O Maraca é nosso!!!”, gritaram os artistas que participaram do evento. Mas, ‘nosso’, de quem.
Desde antes da reforma já se havia acabado com a ‘geral’ do Maracanã, local onde se reuniam as pessoas que possuíam renda mais baixa e não tinham condições de pagar por uma arquibancada. Resumindo: a geral era o local dos ‘pobres’. Com a sua extinção, e o aumento nos preços dos ingressos, deu-se início a um processo de esvaziamento dos estádios (não só do Maracanã), ocasionado pela ‘elitização’ do público. Porém, um público ‘elitizado’ é o mesmo público que pode pagar por um canal pay-per-view e assistir aos jogos comodamente em casa, sem precisar ir ao estádio.
Além disso, com a privatização do Maracanã – ou, seria melhor dizer, com a eikização do Maracanã – o público de baixa renda será ainda mais afastado do estádio. Na Copa do Mundo, os ingressos mais baratos não deverão ter um preço inferior a mil reais (e isso para assistir a um ‘clássico’ entre Congo X Emirados Árabes Unidos, por exemplo), o que afastará as pessoas de baixa renda. Mesmo em jogos do Carioca e do Brasileirão, não é qualquer um que poderá desembolsar sessenta ou oitenta reais para assistir a um jogo. Assim, talvez essa seja a última vez em que esses operários entrem no Maracanã para assistir a um jogo (podem entrar, novamente, para realizar uma nova reforma).  
Será que o Maraca, realmente, ainda é nosso?
O que me admira, também, é ver tantos artistas (uma classe que sempre esteve atuante em vários momentos críticos da nossa História, como o período da Ditadura e o movimento das ‘Diretas Já’, por exemplo) participando deste evento e ainda gritando ‘slogans’, como o já citado “o Maraca é nosso”. Só faltou alguém gritar “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
Nesse momento, nossos artistas deveriam questionar os bilhões de reais gastos na ‘reforma’ do estádio; questionar o legado que, dizem, ficará após a Copa; questionar a tão falada ‘mobilidade urbana’, que a gente não vê, de fato; questionar os elefantes brancos que estão sendo construídos; questionar a corrupção que grassa na nossa política e na CBF; questionar as relações do presidente da CBF com a ditadura militar.
Não é só o Maraca que está deixando de ser nosso. O futebol brasileiro está deixando de ser nosso para pertencer a uma organização que visa apenas obter lucro com jogos da seleção e dos campeonatos por ela patrocinados. O público brasileiro perdeu o vínculo que possuía com a seleção. E isso tudo se reflete nos públicos ridículos que vemos em campeonatos estaduais importantes e, até mesmo, no Campeonato Brasileiro.
Por sinal, houve uma manifestação próxima ao Maracanã, manifestação esta que foi reprimida com uso de gás lacrimogêneo por parte da polícia, segundo informações. Isso porque os governos municipal, estadual e, principalmente, federal, querem dar a impressão de que todos os brasileiros estão entusiasmadíssimos com a realização da Copa do Mundo no Brasil, e não estão preocupados com a farra que está sendo feita com o dinheiro público – o nosso dinheiro. E, de fato, a maioria da população não está.
Só lembrando que, quando anunciou que a Copa do Mundo seria no Brasil, o então presidente Lula disse que apenas as obras de mobilidade urbana seriam custeadas pelo governo, enquanto os estádios seriam todos bancados com dinheiro privado. Coisa que, obviamente, não aconteceu, e mesmo estádios particulares estão sendo bancados com dinheiro público.
O Maraca pode até não ser nosso. Mas o dinheiro é!       

terça-feira, 23 de abril de 2013

A importância da mitologia para a elaboração das culturas grega e romana


Os deuses gregos e latinos estão há muito desaparecidos, substituídos que foram pelo Deus cristão por ocasião da conversão do Imperador Constantino à religião cristã, então recentemente organizada. Embora, atualmente, façam parte apenas da imaginação e da literatura, utilizados como fonte de divertimento, exerceram grande papel na formação da cultura grega e, posteriormente, na construção da do povo romano que, ao conquistar parte do mundo conhecido à época, espalhou-a pelos vários povos dominados, formando a base da cultura ocidental contemporânea. Os deuses gregos constituíram a base do que hoje se conhece por ‘mitologia grega’, e surgiram em virtude da propensão do povo grego para a contemplação e da sua capacidade para o pensamento abstrato e filosófico. Decorre daí o fato de que foram os gregos os grandes influenciadores do pensamento filosófico e da ciência modernas.
A mitologia grega, ao invés de se constituir em uma religião, como a conhecemos atualmente, era mais uma forma de o povo grego justificar as mudanças e fenômenos para os quais não havia uma explicação plausível: por que chovia? O que era o relâmpago? Que estrondo era aquele que vinha do céu quando chovia? Na tentativa de explicar estes e outros fenômenos desconhecidos, os gregos criaram seres divinos, superiores aos homens, os quais decidiam o destino dos seres humanos e influenciavam as coisas que aconteciam na Terra. Por acreditarem firmemente na influência dos deuses sobre os destinos humanos, os gregos entremeavam fatos históricos com narrativas mitológicas, tornando difícil, atualmente, separar o que é fato do que é ficção. A célebre Guerra de Troia, por exemplo, é encarada por muitos historiadores como sendo mera ficção, uma simples narrativa literária, enquanto outros não descartam a sua ocorrência e, inclusive, acreditam terem encontrado indícios do que poderia ter sido a cidade de Troia em uma região que atualmente faz parte da costa turca.
Portanto, o mito exercia uma grande influência para o povo grego, pois era por meio do mito que eles conseguiam explicar fenômenos que, de outra forma, ficariam sem explicação. Para aqueles que consideram a mitologia grega fruto de um povo ignorante e atrasado, vale a pena lembrar que, mesmo nos dias atuais, com todo o conhecimento e tecnologia a nossa disposição, encontramos diversos tipos de superstição nos mais diferentes povos espalhados pelo globo.
Ao iniciar o seu domínio sobre os outros povos, no que se tornaria o grande Império Romano, uma das primeiras regiões a serem conquistadas foi a Magna Grécia, localizada no sul da atual Itália. Os romanos, então, utilizaram-se dos gregos cultos para exercerem diversas funções, entre elas a de professores. O contato com gregos cultos influenciou a cultura e a literatura romana. Porém, o que hoje é referido como mitologia greco-romana não existe. Na verdade, os romanos apossaram-se da mitologia grega e a adaptaram de acordo com sua própria visão de mundo, a qual diferia da visão grega.
Uma das coisas que devemos ter em mente quando estudamos as culturas grega e romana é que existia uma diferença básica entre elas: enquanto os gregos possuíam uma grande inclinação para o pensamento abstrato e despendiam muito tempo em contemplações filosóficas, os romanos eram um povo voltado para as coisas práticas do dia-a-dia. Essa diferença influiu na maneira de os romanos conceberem sua própria mitologia. Assim, enquanto os deuses gregos eram concebidos como seres reais, possuidores de uma personalidade individual e com histórias próprias, os romanos concebiam os deuses representando funções, em vez de serem concebidos como seres reais. Dessa forma, enquanto os gregos viam os deuses como causadores de fenômenos específicos – um raio surgia no céu porque havia sido lançado por Zeus, em sua fúria –, os romanos nomeavam o próprio fenômeno com o nome de uma divindade – Abundância ou Fortuna, por exemplo. Além disso, ao utilizarem a mitologia grega como modelo, os romanos realizaram algumas modificações, como a adoção de nomes romanos para as divindades gregas – Júpiter no lugar de Zeus e Mercúrio no lugar de Hermes, por exemplo –, bem como a utilização de características de divindades já pertencentes à cultura romana, incorporando-as às divindades gregas.
Com a expansão do Império Romano por praticamente toda a Europa, a mitologia desse povo incorporou-se à cultura dos povos por eles dominados, e acabou por influenciar estes povos, mesmo que eles não a adotassem de forma integral.
O próprio cristianismo, na figura da Igreja Católica que começava a se formar, adotou diversos elementos da cultura romana e os transfigurou em dogmas e convenções do cristianismo nascente.
Um exemplo disso são os ‘santos’ da religião católica. Na antiga cultura romana, cada casa tinha um local específico para cultuar seus ‘deuses protetores’, chamados de numes tutelares. Além disso, esses ‘numes’ também funcionavam como uma espécie de protetores das cidades, tais como os santos padroeiros atualmente. A Igreja Católica nascente apropriou-se dessa tradição utilizada pelos romanos e criou os ‘santos’ protetores de cidades (os chamados ‘padroeiros’) e ‘santos’ que funcionam para casos específicos (caso de São Cristóvão, santo protetor dos motoristas, e Santa Luzia, santa protetora dos olhos).
Os mitos que influenciaram as culturas grega e romana, direta ou indiretamente, também influenciaram e continuam influenciando a cultura ‘moderna’, influência esta que se estende ao direito, às línguas, a hábitos sociais, às artes etc.
O legado deixado por essas culturas influencia e continuará influenciando nossa sociedade por muito mais tempo. 

segunda-feira, 15 de abril de 2013

A fundação do sertão: uma guerra no fim do mundo


O livro “Os sertões”, a obra mais importante de Euclides da Cunha, até hoje levanta  questionamentos sobre o seu caráter de obra científica ou de obra literária.
Ao ser enviado pelo jornal O Estado de São Paulo para fazer a cobertura jornalística da Guerra de Canudos, Euclides da Cunha da Cunha transformou-se em testemunha de um dos mais sangrentos capítulos da história brasileira, o que fez com que ele transformasse as anotações para as suas reportagens em livro. Jornalista e homem de ciências, Euclides da Cunha não pôde se furtar a descrever os fatos com a maior precisão e imparcialidade possíveis. Ao mesmo tempo, aproveitou a oportunidade para estudar o ambiente onde se encontrava, um Brasil novo que ele desconhecia e que sua parcela cientista não poderia deixar de analisar. O livro, assim, foi construído com base nas suas observações e separado em três partes: “A terra”, “O homem” e “A luta”.   
No capítulo “A terra” prevalecem as descrições de caráter geológico, climático e botânico, revelando um estudo físico da região; em “O homem”, prevalecem os estudos biológicos e sociológicos, uma análise do tipo humano; em “A luta”, é narrado o conflito desigual entre os sertanejos de Canudos e os soldados da República.       
É interessante notar que, apesar de ter sido escrito por um homem de ciências, encontram-se traços na construção de “Os sertões” que nos remetem ao modelo utilizado pela Bíblia. A Bíblia começa descrevendo a terra criada por Deus, com seus mares, plantas e animais, o que foi similarmente feito por Euclides da Cunha da Cunha ao descrever os rios – o Vaza-Barris, por exemplo – e os animais e plantas da região em “A terra”. Em seguida, a Bíblia narra a criação do primeiro homem, Adão, e da primeira mulher, Eva, os quais tiveram filhos e povoaram a terra. Na sequência de “Os sertões”, “O homem”, Euclides da Cunha trata dos homens que vivem no sertão. Nos narra um Paraíso no qual o sertão é transformado no período das chuvas que trazem a fertilidade. Porém, em seguida, vem a seca – o Pecado Original? – que os “expulsa” desse Paraíso e traz o sofrimento ao povo nordestino. Ainda nos valendo dessa analogia, o capítulo “A luta” seria a própria luta do homem que, ao ser expulso do Paraíso, teria que conquistar o pão com o suor do seu rosto, passando por várias vicissitudes e sofrimentos.    
“Os sertões” é uma obra paradoxal. Ao mesmo tempo que se utiliza de uma linguagem científica, analítica, principalmente nos capítulos “A terra” e “O homem”, apresenta trechos de um caráter quase poético, uma narração em tom épico como se observa em diversas passagens do capítulo “A luta”. O caráter científico da obra pode ser observado também no fato de que Euclides da Cunha se aproxima do sertão e de seus habitantes sem preconceitos. Ele possuía conhecimentos científicos sobre os fatores climáticos e geológicos, mas desconhecia completamente o sertão do ponto de vista social. Então, ele observa, analisa e, com base nos dados levantados, dá sua interpretação dos fatos. Ele não apresenta julgamentos. Os resistentes de Canudos não são descritos como heróis ou como bandidos. Ele não os idealiza nem os demoniza. Não são os destemidos heróis enfrentando a injustiça social representada pela República, nem os bandidos impiedosos que precisam ser destruídos. São homens simples, ignorantes e supersticiosos, cuja maioria não sabia o que estava enfrentando nem o porquê de estarem sendo combatidos. Para essa maioria, o exército republicano era o Demônio que vinha tentá-los e ao qual era preciso resistir a todo custo caso quisessem alcançar o Paraíso prometido ao lado de Deus. Quanto aos soldados – muitos também sertanejos –, eram, em sua maioria, homens simples e ignorantes, que estavam ali apenas cumprindo ordens e que não se davam ao trabalho de entender o que se passava por trás daquele conflito. No final das contas, eram iguais que se enfrentavam apenas por estarem em lados opostos. Aliás, muitos dos soldados, durante os combates travados contra os habitantes de Canudos, acabaram desertando do exército e se aliando a seus antigos oponentes.        



Euclides da Cunha manteve o tempo todo a plena consciência do lado ao qual ele pertencia – a elite, os vencedores do conflito. No entanto, ele procura mostrar o que realmente aconteceu, não se limitando a narrar a versão dos vencedores. Por esse fato, seu livro chegou a despertar o descontentamento de várias personalidades, principalmente dentro do exército, os quais tentaram desacreditar sua narração como sendo uma fantasia de quem não estava lá e não presenciou os fatos. Euclides da Cunha encontrou no interior do Brasil um homem sem história. O sertanejo vivia esquecido em detrimento dos habitantes do litoral. Enquanto no litoral as pessoas beneficiavam-se dos progressos tecnológicos e científicos, o homem do interior vivia em um estágio ainda bastante primitivo, á margem de todos os progressos e conhecimentos da época. Euclides da Cunha retrata o homem do interior do país sem a ingenuidade e a idealização dos românticos. Ele retratou um sertão do modo como ele o entendeu, analisado e dissecado de uma maneira científica. Um sertão estudado do ponto de vista geológico, antropológico, sociológico e psicológico. E também político. Euclides traçou o retrato de um país que, após passar pelo período de Colônia, Império e recém ingresso na República, ainda não havia se encontrado como nação. Um país que ainda precisava ser “descoberto”. A postura científica de Euclides da Cunha tentou traçar um quadro real e imparcial dos acontecimentos. Dessa forma, pode-se dizer que Euclides da Cunha “descobriu” esse mundo. Assim como a carta de Pero Vaz de Caminha pode ser considerada como a “certidão de nascimento” do Brasil, “Os sertões” pode ser visto como a “certidão de nascimento” do povo sertanejo. Ou, pelo menos, como o reconhecimento de uma existência até então ignorada por um país que insistia em não percebê-los.
“Os sertões” pode ser definido como um texto fundador. O livro apresenta uma das características mais marcantes de um texto considerado fundador: a não obediência aos limites impostos por um gênero. E, por seu caráter descritivo e analítico, marca um novo começo do pensamento social brasileiro.
Os termos técnicos utilizados por Euclides da Cunha, as descrições minuciosas da terra e do homem, demonstram a preocupação do estudioso diante de algo que ainda lhe é desconhecido. É claro que, como todo cientista, Euclides da Cunha tem as suas influências. A do sociológo polonês Gumplowicz é evidente. Porém, ao lado do caráter científico encontramos traços puramente literários. Euclides mescla trechos científicos com um quê de poesia em várias passagens do romance, em descrições que não se limitam a um detalhamento técnico sobre um evento. Isso se torna evidente em trechos como “A terra despertava triste. As aves tinham abandonado espavoridas aqueles ares varridos, havia um mês, de balas. A manhã surgia rutilante e muda”.(Tomo II: ‘A luta’, p. 228).
Uma outra característica que faz de “Os sertões” um livro fundador é uma espécie de procura por uma nacionalidade brasileira, algo que encontraremos posteriormente durante o movimento modernista, principalmente em livros como “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Euclides da Cunha afirmou o sertanejo como a essência do país. Isso fica evidente nos trechos em que ele narra a figura dos sertanejos encontrados mesmo entre as fileiras do exército republicano. O caboclo forte que se adapta aos rigores da terra, ao contrário do homem do litoral e sua sociedade calcada em elementos importados da Europa. Outra característica que aponta para o futuro é o fato de “Os sertões” ter sido uma espécie de antecipação ao que foi feito pelos escritores da segunda fase do modernismo, os quais escreveram obras que tiveram o sertão nordestino como personagem principal. E é sobre isso que Euclides da Cunha escreve. Mais do que narrar um conflito no interior do país, “Os sertões” nos mostra uma terra e um homem ainda desconhecidos e que, longe de estarem em conflito, vivem amalgamados por um destino em comum, para eles tão inevitável quanto o nascer do dia: a seca.  

terça-feira, 9 de abril de 2013

O determinismo e o poder da linguagem em “Vidas Secas”


No processo de busca de uma identidade nacional, de uma escrita ‘brasileira’ que se diferenciasse dos padrões portugueses que vigoravam entre os escritores brasileiros, vários movimentos buscaram alternativas que causassem essa ruptura literária entre os dois países. O Romantismo, por exemplo, buscou utilizar uma expressão mais coloquial, mais próxima do modo de falar do povo brasileiro. Porém, foi com a chegada do Modernismo que essa tendência se acentuou. Em 1930 ocorreu uma verdadeira explosão de criação ficcional na literatura brasileira. Os escritores desse período estavam preocupados com o questionamento direto da realidade, marcados por uma visão sociológica do meio. Esta tendência à literatura social, combinada com a descentralização cultural, deu lugar ao aparecimento de formas artísticas regionalistas, com destaque no Nordeste. Por isso é freqüente a expressão “romance regionalista de 30”, aplicada de forma genérica ao conjunto da produção nordestina da época. Surge, então, um equívoco quanto ao conceito de regionalismo pois, para ser classificado como ‘regional’ deve haver, além do tema, uma especificidade de linguagem e tratamento literário. Nesta perspectiva, o romance de Rachel de Queiroz, “O Quinze” (1930), pode ser considerado efetivamente regionalista na medida que o meio local e a realidade social e humana fixados no romance refletem uma vivência profunda da região. Em José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos encontram-se algumas das realizações mais bem sucedidas da ficção regionalista brasileira. “Vidas Secas” é uma obra que se insere no ciclo do romance regionalista nordestino desenvolvido ao longo dos anos 30, constituindo-se num dos marcos do neo-realismo na literatura brasileira.
Em Graciliano Ramos e suas obras o social não prevalece sobre o psicológico, embora não saia diminuído. Graciliano investiga o homem nas suas ligações com uma determinada matriz regional, mas focalizado principalmente no drama irreproduzível de cada destino.
É possível perceber uma linha divisória das tendências da ficção brasileira a partir da polaridade campo x cidade, que caracteriza, na prosa de ficção regionalista, dois distintos espaços que se prestam à ambientação dos conflitos dramáticos característicos de cada romance e, claro, dois distintos polos a partir dos quais a crítica social e a reivindicação de transformações sociais, políticas etc. é realizada: o campo, depositário de tradições tanto na mentalidade como na língua dos habitantes; e a cidade, centro do progresso material e do sucessivo abandono das tradições, sujeito a transformações. Este é o motivo pelo qual se diferencia do espaço rural o qual defende aspectos singulares de sua identidade como fator vital, separando-se assim, a ficção rural, por um lado, e a ficção urbana, por outro. A arte regionalista stricto sensu seria aquela que buscaria enfatizar os elementos diferenciais que caracterizariam uma região em oposição às demais ou à totalidade nacional. Este regionalismo literário é compreendido, pelos escritores e pelos críticos, de formas diversas, recorrendo desde a observação puramente geográfica até a complexa compreensão ecológica, sociológica, psicológica e linguística.
Todos esses elementos estão presentes na obra “Vidas secas”, publicada em 1938. Nela, um narrador externo conta a história de Fabiano e sua gente. O discurso indireto livre, porém, permite a Graciliano confundir narrador e personagem de modo a criar uma cumplicidade entre os dois, desfazendo a aparente neutralidade.
O método sociológico busca relacionar o homem com os outros homens e com a sua condição social. Sob este prisma, o meio possui uma grande influência sobre o comportamento dos homens e em como eles se relacionam entre si e com o próprio ambiente. Isso é algo preponderante em “Vidas secas”. Na obra, podemos observar a influência do ambiente na construção dos personagens e de suas personalidades. A história, que gira em torno de Fabiano e sua família, nos mostra pessoas que possuem uma grande dificuldade em se comunicar. A influência do meio, aqui, é visível. Fabiano e sua gente vivem em uma terra seca, um ambiente quase hostil. Nesse ambiente, o homem acaba tornando-se também seco. Suas vidas tornam-se tão secas quanto o ambiente que os cerca. O ambiente absorve os homens, amalgamam-se formando uma única entidade. A seca torna o ambiente árido, não permite o desenvolvimento da vida vegetal, expulsa e mata homens e animais, indistintamente. Isso faz com que homens e animais acabem por perder suas características, aproximando-se em uma tentativa de tentarem, juntos, a sobrevivência. É interessante notar um fato curioso que ocorre durante o desenrolar da trama: enquanto os homens passam por um processo de zoomorfia, animalizando-se, a cachorra Baleia passa por um processo quase inverso, ‘humanizando-se’ por meio do convívio com a família e com a proximidade que a seca os obriga a ter durante o processo de retirada. Em determinados momentos, Baleia apresenta sentimentos e pensamentos de caráter nitidamente humano demonstrando uma personalidade que se mistura com a dos filhos de Fabiano, por exemplo, quando os três brincam no lamaçal sem que se consiga distinguir uns dos outros. Esse processo fica ainda mais evidenciado quando se nota que a cachorra Baleia possui um nome que a personaliza, enquanto os meninos são tratados apenas como ‘menino mais velho’ e ‘menino mais novo’, ou simplesmente ‘menino’ ou ‘filho’.
O processo de animalização dos personagens conta, também, com outro fator. Além de sofrerem com a seca, também há a opressão e a exploração por parte do dono da fazenda. Neste romance, há uma linha bem nítida entre quem oprime e quem é oprimido. Assim como os animais, que não têm outra opção a não ser se submeter às vontades dos homens, Fabiano e sua família são oprimidos, e aceitam passivamente essa opressão por não vislumbrarem uma outra opção de vida. A obra trata de um grave problema social que é a apropriação da terra que, junto com a seca, acaba por expulsar os sertanejos de seu “habitat”, equiparando-os aos animais. A família de Fabiano, assim como os demais nordestinos, vive uma vida miserável e sem perspectivas de mudanças.
“Vidas secas” é um romance que se insere no realismo por exprimir diversas características presentes neste movimento. Entre elas temos a questão do determinismo, presente em toda a obra e do qual Fabiano e sua família não parecem possuir forças para escapar. Fabiano vê-se impotente, perdido no meio de situações as quais ele não tem forças para combater e, o que é pior, não possui conhecimento dessas situações. A inconsciência de Fabiano é um fator preponderante para que ele não consiga se libertar.    
Fabiano e sua família são personagens que vivem uma vida fragmentada, influenciados que são pelo ambiente onde vivem. As reações dos personagens se produzem de fora para dentro, já que eles vivem à mercê de um mundo onde eles nada têm o que fazer, a não ser seguir o ritmo da seca, do patrão, da autoridade.
“Vidas Secas” é um romance construído com o que se poderia chamar de um arranjo literário aberto: os seus capítulos são feitos de uma forma que permitem uma leitura autônoma, quase como se tratasse de um livro de contos, ordenados por justaposição. Isso levou muitos estudiosos a afirmar que o livro é um “romance desmontável”, por permitir várias leituras, quase como um painel com quadros diversificados que acabam por convergir pra um mesmo drama. Porém, se analisarmos a obra como um todo, podemos observar que ela possui coesão entre as suas diversas partes, coesão esta derivada do tema ao qual alude, além da organicidade da concepção.
Fabiano e os seus, na sua jornada à mercê dos caprichos da seca, enfrentam os mesmos problemas, passam pelas mesmas situações. Suas vidas e seus dramas se entrelaçam de tal maneira que dir-se-ia tratar-se de um único elemento fragmentado em partes distintas, porém homogêneas. Isso pode ser observado (a fragmentação dos personagens, tanto individualmente quanto em família) pelo fato de que cada capítulo enfoca um dos elementos que formam o quadro geral: Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, Baleia. Cada qual com seu pequeno drama particular que se entrelaça a um drama maior: a seca. Porém, “Vidas secas” não é um romance da seca. A seca serve como pano de fundo para a representação do humano a mercê de forças poderosas as quais ele não entende e não consegue controlar. As pessoas mudam-se para lugares distantes – porém, semelhantes na desolação e na falta de esperança – atrás de um sonho: encontrar uma terra onde possam encontrar um trabalho que possa lhes garantir a subsistência. Sua única ambição é, praticamente, sobreviver.   
Fabiano é um homem do sertão. Entrosa-se com a desolação e vazio do meio rural, enquanto, na cidade, sente-se como um estrangeiro, perdido entre convenções as quais ele não consegue compreender. A cidade assusta, desorienta, oprime. Fabiano sente-se como um animal tirado de seu ambiente e colocado em um local desconhecido. O trato com as pessoas, principalmente as diferentes do seu meio familiar, ao qual ele já está acostumado, exige um nível de comunicação ao qual ele não está habituado, algo que ele reconhece necessário, mas que é difícil para ele. Vê-se essa situação nos seus confrontos com o patrão e o soldado amarelo, por exemplo. Fabiano, que no trabalho com os animais e os serviços da fazenda sente-se tão seguro de si, demonstra-se humilhado e diminuído diante daqueles que ele vê como uma personificação do Poder, um poder o qual ele não compreende muito bem, mas que reconhece e teme. Ele se vê como um dos animais da fazenda, dos quais o dono é proprietário, tendo o direito de dispor deles da forma que bem entender.
Esse sentimento leva-o a uma perda da humanidade, um processo de zoomorfia que se reflete nos seus pensamentos, quando se compara aos animais e admite sentir-se à vontade entre eles, e a própria dificuldade que Fabiano demonstra em relação ao uso da língua. A linguagem é um dos principais elementos que nos distinguem dos animais. Fabiano fala pouco, exprime-se através de gestos e grunhidos, não encontra as palavras quando precisa delas. Como um cão, ou como gado sendo tangido para o abatedouro, abaixa a cabeça e aceita tudo o que lhe fazem, mesmo quando reconhece a injustiça daquelas ações.            
Do ponto de vista sociológico a obra nos mostra a relação de classes: o patrão de Fabiano e o soldado amarelo, os quais refletem a classe dominante, o Poder, a autoridade. Há também a figura de seu Tomás da bolandeira, que representa outro tipo de poder, o da classe intelectual. Por fim, Fabiano e sua gente refletem a classe dominada, subjugada, receosa, desconhecedora de seus direitos. Fabiano demonstra um profundo respeito e temor pelos poderosos. Reconhece os abusos e o roubo que seu patrão pratica contra ele, mas não encontra forças para se revoltar, considerando que as coisas sempre foram assim, e devem continuar assim. O mesmo se aplica ao soldado amarelo. Ao ser preso, Fabiano percebe a maneira arbitrária pela qual a prisão se efetuou, revolta-se contra o fato, mas não encontra palavras para exprimir sua indignação, consolando-se no fato de que “apanhar do governo não é humilhação”.
O soldado amarelo e o dono da fazenda representam duas formas distintas de poder e opressão. O soldado amarelo representa o poder armado. Mesmo sendo tão rústico e miserável quanto Fabiano, impõe-se pelo poder que a ‘farda’ lhe confere, um poder instituído e que serve aos ricos e poderosos que os mantêm. Já o dono da fazenda representa o poder econômico. 
É o poder econômico que oprime, que escraviza o sertanejo tirando-lhe a própria humanidade. Representa uma estrutura social consolidada e imobilizada. Uma estrutura opressora que, aliada a outros elementos, acaba por determinar o nomadismo dos retirantes.
Em relação a seu Tomás da bolandeira, Fabiano demonstra uma tensão entre dois polos: a indiferença em relação à cultura demonstrada por seu Tomás e o posterior reconhecimento de que ela é necessária e pode ser um agente de mudança – a própria mudança que eles fazem, no final, indo para uma outra cidade e com o pensamento de colocar os filhos em uma escola, uma esperança de ruptura com a situação miserável na qual viviam. Tensão, aliás, que permeia toda a obra. Fabiano é um homem dividido entre o moderno e o antigo. Aceita algumas soluções modernas, bem como recorre à tradição de seus pais e avós. Um exemplo bem claro desse fato é quando Fabiano tenta curar um bezerro no “rasto”.
Sinhá Vitória representa uma espécie de contraponto de Fabiano. Rústica assim como ele, ela, entretanto, se mostra mais astuta e menos resignada com as injustiças com as quais sofrem. Ao contrário de Fabiano, que se contenta apenas em sobreviver, sinhá Vitória tem aspirações, como o sonho de possuir uma “cama de lastro de couro”. Além de representar um conforto maior do que a cama de varas, a cama de lastro de couro representa o seu desejo de se inserir em uma espécie de cidadania, uma diferenciação entre ela e os animais com os quais convivem. Além disso, sinhá Vitória possui uma maior desenvoltura no exercício da linguagem, o que causa certa admiração de Fabiano, que a considera mais inteligente do que ele próprio.
Já os meninos são um caso à parte. Para começar, a ausência de nomes – como já foi referido antes, são tratados simplesmente como ‘menino mais velho’ e ‘menino mais novo’ – revela uma despersonalização que os caracteriza, despersonalização essa decorrente da condição social na qual vivem. São figuras anônimas, carentes de importância dentro daquele meio.
O ‘menino mais novo’ sonha em ser como o pai, representando a continuação de algo personalizado pelo pai, pelo avô e pelos que vieram antes deles. É a continuidade daqueles que não veem outra opção para suas vidas. Já o ‘menino mais velho’ demonstra curiosidade pelo significado das palavras, como no caso da palavra ‘Inferno”, a qual ele ouviu e não encontrou ninguém que lhe explicasse o significado. Isso demonstra o poder das palavras como uma possibilidade de ocasionar mudanças. O desejo de aprender, de conhecer algo mais além dos limites estreitos dentro dos quais vive.
Enquanto os humanos passam por um processo de zoomorfia, a cachorra Baleia faz o caminho inverso. Diferentemente dos meninos, ela possui um nome que a personaliza. Circula pela família como se fosse um dos seus membros. Brinca com os meninos como se fosse uma espécie de irmã. O ‘menino mais velho’, por exemplo, quando leva um cascudo de sinhá Vitória por insistir em saber o significado da palavra inferno, encontra consolo junto à cachorra. Ela se revolta com os pontapés que leva, mas, assim como Fabiano, considera os sofrimentos como algo natural.
Diante disso, podemos observar que, apesar de ser uma obra de 1938, continua atual diante do retrato que nos mostra de uma sociedade às voltas com o flagelo da seca que obriga os nordestinos a abandonarem seus lares à procura de um lugar onde possam garantir sua sobrevivência. Mostra-nos, também, as relações sociais que, longe de se restringirem ao Nordeste brasileiro, estão presentes em diversos pontos diferentes, seja o sertão nordestino ou uma favela em um grande centro urbano, onde as pessoas vivem em condições sub-humanas, destituídas de sua cidadania e de sua humanidade.
O sertanejo, ainda hoje, vive na vã esperança de uma mudança que nunca chega, sendo obrigado a mover-se seguindo os caprichos da seca e dos poderes que os alijam do mínimo necessário para uma sobrevivência com dignidade.

terça-feira, 2 de abril de 2013

A dicotomia entre Tradição e Modernidade


Na época ‘moderna’ em que vivemos, cheia de ‘modernidades’ que logo se tornam obsoletas devido à rapidez com que as novidades surgem, temos uma tendência a torcer o nariz para as coisas ‘antigas’ – mesmo que esse antigo se refira apenas a quinze anos atrás. O negócio agora é ser ‘moderno’, estar antenado com as coisas ‘modernas’. Não existe um meio termo: ou se é moderno ou se é antiquado.
O termo ‘moderno’ passou a ser usado de uma forma tão indiscriminada que se tornou um pouco complicado defini-lo. Pessoas e produtos ostentam o rótulo ‘moderno’ como uma forma de sobrevivência. Ser antiquado, ou não ser ‘moderno’, acaba se transformando em um atestado de óbito, algo a ser rejeitado. Ser antigo é não ter mais utilidade. Moderno confunde-se com atual; antigo confunde-se com tradição. Tradicionalista e conservador tornaram-se dois dos piores epítetos que algo ou alguém pode receber. Afinal, ser Moderno é romper com a Tradição. Ser Moderno é não ter Tradição.
Literariamente, esse conceito se aplica a vários estilos. O Barroco, por exemplo. Por sinal, já vi o termo barroco sendo aplicado a algo que alguém queria definir como sendo antigo, ultrapassado. No Barroco, o conflito demonstrado pelos artistas do período, um sentimento que parecia ser o de um deslocamento em relação a sua ‘modernidade’, realçou ainda mais essa característica de algo fora da modernidade. Afinal, o Barroco seria um retrocesso após o Renascimento? O Barroco, assim como todos os estilos literários, refletiu o seu tempo, mas, também, questionou-o, criticou-o. Afinal, o período no qual surgiu o Barroco foi um período dicotômico, de pensamentos opostos que lutavam por seu espaço. De um lado, a Reforma protestante rompendo com pensamentos seculares e desprovidos de lógica, a razão do cientificismo começando a se impor sobre as superstições; de outro, a Contra-Reforma católica tentando restabelecer seu status quo, a razão cedendo lugar ao obscurantismo. Razão versus superstição. Ciência versus religião. Homem versus Deus. O Barroco, embora pareça se contrapor ao Renascimento, acabou herdando alguns traços deste. Dessa forma, o Barroco foi ‘Moderno” ou um retrocesso? Os artistas barrocos foram modernos ou estavam apenas expressando o pensamento do seu tempo?
Para responder a essa questão, temos primeiro que rever o termo ‘moderno’. Afinal, ‘moderno’ seria apenas o tempo presente ou futuro, ou o passado pode ter sido ‘moderno’? Moderno e tradição são antagônicos? Pode haver tradição na modernidade e vice-versa?
Conforme Otávio Paz, em seu “Filhos do barro”, “o moderno é uma tradição. Uma tradição feita de interrupções, em que cada ruptura é um começo”. 
 Esta asserção de Otávio Paz pode ser constatada em vários momentos pelos quais passou a literatura. O Arcadismo, por exemplo, que foi uma ruptura com o Barroco, nada mais foi do que um retorno às idéias clássicas. Da mesma forma, em outros movimentos literários podemos encontrar elementos utilizados por movimentos anteriores. O moderno, nesse caso, nada mais seria do que uma modificação de idéias utilizadas anteriormente. Assim, ainda de acordo com Otávio Paz, o moderno deu-se “não porque seus autores tenham negado o estilo antigo, mas porque oferecem novas e surpreendentes combinações dos mesmo elementos”.
Analisemos, por exemplo, o “Sermão de Santo Antônio”, do padre Antônio Vieira, e poemas de Gregório de Matos, dois dos mais destacados escritores do seu tempo.
Vieira utiliza-se, de forma magistral, de elementos tirados da Bíblia para ilustrar seus sermões. Para tanto, utiliza-se da visão da religião católica, a qual ele representa. Em um período onde a Reforma Protestante questionava dogmas e posturas da religião católica – Martinho Lutero, que foi um dos iniciadores do movimento, foi ele próprio um monge católico, o que já seria uma forma de ruptura com a Tradição –, Vieira recorria à Tradição para ilustrar seus sermões. Entretanto, Vieira foi, a seu modo, um questionador, não da religião católica, mas da postura que alguns elementos da religião ostentavam. Seus sermões, ao contrário da poesia de Anchieta, por exemplo, fugiam do discurso estritamente doutrinário, apoiado apenas nos dogmas e doutrinas católicas, buscando firmar-se em argumentos lógicos e racionais, os quais seriam a tônica do Iluminismo, posteriormente. Agindo assim, estava sendo questionador, rompendo com o modelo tradicional. Estava sendo ‘moderno’. Essa ambiguidade de Vieira pode ser constatada no próprio “Sermão de Santo Antônio”. Em um dos trechos do sermão, Vieira cita o evangelista Mateus (Mt 5, 14) quando escreve ‘Vos estis lux mundi’. Apóia-se ainda na Bíblia quando diz que Santo Antônio auto-intitula-se ‘o sal da terra’ (Mt 5, 13). Contudo, uma leitura atenta do “Sermão de Santo Antônio” mostra-nos as críticas que Vieira faz a membros da sociedade da época, bem como a membros da Igreja Católica. Vale ressaltar que Vieira não criticava a Igreja como instituição, e sim determinados elementos que não se comportavam de uma maneira adequada. Uma das partes do “Sermão de Santo Antônio” deixa bem clara essa posição: “Tanta é a imunidade das pessoas e bens eclesiásticos; mas estamos em tempo em que é necessário cederem de sua imunidade, para socorrerem a nossa necessidade”.
 Já Gregório de Matos, nascido no Brasil, utilizou-se de três tipos de poemas para compor o quadro social de sua época: sacro, satírico e lírico.
Gregório de Matos é um exemplo de como se pode misturar a Tradição e o Moderno em um mesmo escritor. Religioso, ele escreveu diversos poemas sacros valendo-se dos princípios católicos dominantes na colônia. Seus poemas sacros refletem uma tradição que se mantinha na colônia desde o Quinhentismo, principalmente através dos poemas de José de Anchieta. Os poemas sacros de Gregório de Matos são voltados para as questões religiosas e, a exemplo dos sermões de Vieira, exaltam Deus e a religião católica. Ao mesmo tempo, seus poemas satíricos são mordazes nas críticas a alguns elementos das fileiras eclesiásticas, pessoas e hábitos da sociedade. 
Assim, vemos que tanto Vieira quanto Gregório de Matos encarnam a dicotomia presente no Barroco. Ambos refletem o conservadorismo nos seus sermões e poemas quando exaltam a visão católica de Deus, já que as idéias da Reforma Protestante ainda não haviam tido penetração no Brasil. Concomitantemente a isso, ambos demonstram um grande espírito crítico e visão política ao relatar fatos que acontecem na colônia. A visão crítica e o uso da razão – veja-se a lucidez de Vieira ao analisar elementos políticos e, até mesmo, o uso que alguns padres faziam da religião –, que seriam marcas de um período posterior, já estavam presentes nos escritos desses dois autores.
O Barroco, longe de ser apenas um hiato entre o Renascimento e o Neoclassicismo, lançou as bases do que viria a ser o pensamento dominante em períodos posteriores: o Homem questionando-se sobre sua missão e lugar no mundo, questionando a religião (Vieira e Matos criticavam alguns membros do clero), discutindo a política. Paradoxalmente, exaltava posturas que não condiziam com um pensamento racional, lógico. Assim, podemos dizer que o Barroco foi um estilo que marcou uma transição. Representou a defesa de um arcaísmo ao mesmo tempo em que lançou as bases de um pensamento moderno. Dessa maneira, em seu bojo, o Barroco foi um estilo extremamente paradoxal. E o paradoxal é uma marca da “modernidade”.