quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Cartas e diários: a função do narrador em “Drácula”, de Bram Stoker



Qualquer estudante de Teoria da Literatura conhece os tipos de narrador: intradiegético e extradiegético. O narrador extradiegético é aquele que não participa da história. É um narrador onisciente, que não nos revela quem ele é e nem como ficou conhecendo os detalhes da história que narra. Já o tipo de narrador intradiegético se divide em três tipos: autodiegético, quando o narrador nos conta as suas próprias aventuras, ou seja, o narrador é o personagem principal da história (um exemplo é Bentinho, o narrador de Dom Casmurro); homodiegético, quando o narrador participa da história, mas nos conta as aventuras de outra pessoa (exemplo clássico é o Dr. Watson, o narrador das aventuras de Sherlock Holmes); e heterodiegético, quando o narrador não participa diretamente da história que narra, geralmente conhecendo a história por documentos ou relatos de outras pessoas (é o caso do filme “Sempre ao seu lado”, onde o narrador é o neto do professor de música, falecido muitos anos antes de ele nascer). A maioria dos livros possui um destes tipos de narrador para desenvolver a trama que será narrada ao leitor.
Em Drácula, a obra clássica de Bram Stoker, a história é narrada por meio de cartas, diários e notas de jornal. Neste caso, não existe apenas um narrador, mas vários narradores, já que alguns personagens expressam seu ponto de vista sobre a história narrada por intermédio de suas cartas e anotações em diários. Assim, os narradores acabam se misturando e acabamos por ter a narração da história por meio de diferentes pontos de vista. Essa é uma mudança fundamental na estrutura do enredo que, normalmente, nos apresenta o ponto de vista de apenas um narrador, o qual tem o controle total sobre a história que está sendo contada. Quando existe mais de um narrador esse controle se esvai, já que diferentes narradores podem ter pontos de vista diferentes sobre uma mesma questão. Em Drácula, temos a narração da história por intermédio do diário de Jonathan Harker; das cartas e do diário de Mina Murray (noiva de Jonathan Harker); das cartas de sua amiga, Lucy; recortes de jornais; cartas do dr. Seward, diretor do sanatório, além de gravações que o mesmo faz sobre os seus pacientes; e uma gravação do dr. Van Helsing.
Embora do ponto de vista da teoria literária Bram Stoker tenha utilizado apenas um tipo de narrador, o homodiegético (já que todos os narradores participam da história, embora nenhum deles seja o personagem principal, o qual é o próprio Drácula), ele inovou com esse tipo de narração ao nos oferecer pontos de vista diferentes sobre a história que nos está sendo narrada. Este é um recurso interessante, pois temos acesso a diversas situações que estão ocorrendo em diferentes locais, às quais alguns narradores-personagens não têm acesso e, nesse caso, não poderiam ‘contar’ ao leitor o que está ocorrendo. Assim, é como se tivéssemos um narrador extradiegético, que tivesse consciência de tudo o que ocorre em qualquer lugar e com todos os personagens, nos dando uma visão global da história. Do ponto de vista estrutural, Drácula é um livro inovador, misturando conceitos e diluindo fronteiras – narrativas, espaciais etc.
Publicado originalmente em 1897, Drácula tem uma legião de admiradores, tendo diversas publicações e sendo traduzido para diversas línguas. Drácula tornou-se o representante legítimo do mito do vampiro, com todos os demais vampiros que apareceram depois dele sendo inspirados por este personagem fascinante.
Drácula é o típico caso em que um personagem supera o próprio autor (Sherlock Holmes, criado por Conan Doyle, é outro exemplo). Porém, Bram Stoker escreveu outros textos que, atualmente, encontram-se quase esquecidos, mas que também merecem ser lidos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Ulisses: a Razão sobrepujando os desafios



A Odisseia, escrita pelo poeta grego Homero, tornou-se um dos poemas épicos mais estudados e difundidos ao longo do tempo, tornando-se um verdadeiro “clássico” da literatura, tanto em termos de cânone oficial quanto em termos de importância histórica para se entender a civilização grega e sua influência na expansão e domínio do Império Romano.
O poema trata do herói grego Ulisses, rei da pacífica ilha de Ítaca que, de uma hora para outra, se vê obrigado a tomar partido na guerra entre os gregos e os troianos, devido ao rapto da grega Helena, mulher do rei Menelau, pelo príncipe Paris, filho do rei de Troia. Terminada a guerra, Ulisses tenta voltar para Ítaca e para sua esposa, Penélope, mas uma série de situações sucedem-se, impedindo-o de retornar.
Em todas as situações, mesmo passando por perigos extremos, capazes de abalar o mais forte e valente dentre os homens, Ulisses sempre mantém-se calmo e, focalizando o problema em questão, encontra uma forma de resolvê-lo, livrando-se de uma situação, muitas vezes, mortal. A inteligência e astúcia de Ulisses sempre salvam seus marinheiros dos perigos por eles enfrentados.
Este poema épico poderia ser comparado, nos dias atuais, aos filmes em que o mocinho, valendo-se geralmente de sua bravura e força – além de armas de alta tecnologia – e, em menor grau, de sua astúcia e inteligência – excetuando-se o personagem da antiga série de tv, McGyver, que se valia de sua habilidade e inteligência para construir equipamentos que o auxiliavam a se livrar de situações de risco –, consegue escapar de todas as situações perigosas. Entretanto, longe de se constituir apenas em um “filme de ação” da antiguidade, a Odisseia representa algo que resume a civilização no seio da qual ela surgiu.
A Grécia antiga sempre foi considerada como o ‘berço’ da civilização ocidental atual. Foi lá que surgiram grandes estudiosos, sábios e filósofos, tais como Sócrates, Platão, Aristóteles e tantos outros. Aristóteles, por exemplo, escreveu a Poética, que é considerada como o primeiro tratado de Teoria da Literatura; a filosofia atual tem suas bases nas escolas filosóficas gregas. O Império Romano, um dos maiores impérios já existentes, formou-se a partir de uma imitação dos modelos utilizados pelos gregos. Sua mitologia e literatura inspiraram-se na mitologia e literatura gregas que, quando o Império Romano começou a se formar, já se encontravam em seu ápice.
Outra característica da Odisseia é que, ao contrário de outros poemas que relatavam os feitos de deuses ou semideuses, retratou os feitos de um homem comum, sem nenhum poder especial ou uma força sobre-humana, um homem que utilizava apenas a sua inteligência e astúcia e sabia esperar o momento certo para agir, sem se precipitar devido à pressa ou ao medo. Ulisses, na verdade, representava o ideal grego, onde a razão era considerada a força que devia impulsionar os homens. Diante de quaisquer desafios, mesmo diante daqueles que pareceriam incontornáveis para qualquer outro homem, Ulisses analisava a situação e, por meio de seu intelecto, procurava encontrar uma forma de resolver a situação a seu favor. Foi agindo assim que ele conseguiu vencer todos os desafios, voltar para Ítaca e recuperar seu trono e sua amada esposa.
Mais do que apenas uma bela história de aventura, a Odisseia resume o pensamento grego da época. Diante de qualquer adversidade, mesmo daquelas lançadas pelos próprios deuses, a razão seria a melhor arma para superar os desafios e sair-se vencedor.
Ulisses foi um herói. Porém, ao invés de ser um herói que realizou grandes feitos físicos – como Hércules e seus doze trabalhos, por exemplo –, foi um herói que se valeu da inteligência para alcançar seus objetivos. Mais do que um homem, Ulisses representa o ideal que os grandes pensadores gregos pretendiam alcançar.     

terça-feira, 30 de outubro de 2012

A difícil questão entre o moral e o legal



Neste fim de semana, aconteceu uma situação no jogo Internacional x Palmeiras que faz com que pensemos a situação brasileira, não só no futebol, em época de Copa do Mundo, mas também no cenário político, já que presenciamos muitas situações ilegais ocorrendo a cada momento. Voltando ao lance em questão, vale lembrar, inicialmente, que a FIFA, a manda-chuva do futebol mundial, proíbe terminantemente o uso de quaisquer recursos eletrônicos que possam influenciar no andamento do jogo, exceção feita ao aparelho de comunicação utilizado pelo árbitro e pelos seus auxiliares.
No jogo entre Internacional x Palmeiras, o atacante Barcos, do Palmeiras, fez um gol com a mão. O árbitro, entretanto, não viu a irregularidade e validou o gol. O mesmo fizeram o bandeira e o auxiliar na linha de fundo. Os jogadores do Internacional reclamaram e, na confusão, o árbitro foi avisado, pelo delegado da partida (o qual, diga-se de passagem, não faz parte da equipe de arbitragem e, portanto, não pode interferir no jogo), de que o gol realmente havia sido feito com a mão. Entretanto, aparentemente, o delegado recebeu a informação por intermédio de uma repórter da tv Bandeirantes que se encontrava à beira do gramado e foi informada pelo comentarista do jogo. Diante disso, o árbitro voltou atrás na decisão e anulou o gol, sem, contudo, dar cartão amarelo para o atacante palmeirense, o que seria o mais acertado.
Resumindo: apesar da proibição da FIFA de se utilizar qualquer recurso eletrônico, o árbitro do jogo se valeu de uma informação recebida de alguém que não faz parte da equipe de arbitragem para anular o gol do Palmeiras.
O Palmeiras, agora, pede a anulação do jogo baseado no fato de que o meio utilizado para invalidar o seu gol foi ilegal. Isso me faz lembrar de um caso, ocorrido nos Estados Unidos, em que um traficante de drogas teve sua casa invadida pela polícia. Na casa, foi encontrada uma grande quantidade de drogas e o traficante foi preso. No julgamento, seu advogado alegou que a invasão fora ilegal, pois os policiais não estavam munidos de um mandato de busca e apreensão. Assim, o traficante, mesmo sendo culpado, foi solto pelo fato de que as provas recolhidas contra ele foram obtidas de modo ilegal.
O mesmo se aplica ao gol de mão do Palmeiras. Moralmente, a anulação do gol foi correta, já que o gol foi feito de forma irregular. Porém, a maneira como o gol foi anulado também foi feita de modo ilegal, já que ninguém da equipe de arbitragem havia percebido a irregularidade e havia validado o gol, a princípio. A “prova” da irregularidade foi obtida por meio de uma repórter, utilizando o recurso da televisão, recurso este proibido pela FIFA.
Entretanto, em um país onde presenciamos, todos os dias, várias irregularidades, praticadas por políticos, na sua maioria, mas também pelo cidadão comum – que reclama da roubalheira dos políticos, mas que sempre tenta “levar vantagem” em tudo –, esse caso deve ser mais um para entrar no rol dos casos em que, apesar de uma irregularidade comprovada, a coisa toda vai acabar em pizza – e, no caso do Palmeiras, time fundado por italianos, nada mais apropriado.
Na época em que Lula era presidente, presenciamos vários casos comprovados de ROUBOS praticados por pessoas próximas a ele. Porém, Lula alegava que não sabia de nada e a coisa ficava por isso mesmo. Vimos, recentemente, várias pessoas sendo julgadas no caso do Mensalão. Se o julgamento fosse, realmente, sério, e não apenas uma tentativa de se mostrar que está sendo feita alguma coisa para moralizar o país, Lula deveria estar entre os acusados e deveria ser condenado por omissão, no mínimo.
Entretanto, em um país onde praticar atos ilegais já virou rotina, o uso ilegal da tv para anular o gol do atacante Barcos acabará sendo logo esquecido. E vamos em frente que a Copa está chegando.           
Contrariando o comercial da Brahma, vou deixar o otimismo imbecil de lado e vou dizer, a plenos pulmões: IMAGINA NA COPA!!!

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A cultura do capitalismo - desejo induzido



Nunca se produziu tanta “arte” e nunca surgiram tantos “artistas” quanto atualmente. Escritores, pintores e músicos proliferam em todos os cantos do globo. Entretanto, a qualidade do que nos é apresentado vem caindo vertiginosamente, nos fazendo repensar o conceito de arte. Afinal, o que nos tem sido atirado ao rosto todos os dias realmente é arte?
No mundo capitalista, a arte passou a ser apenas mais um item de consumo e, como tal, deve ser consumida rapidamente para rapidamente ser descartada, cedendo seu lugar para uma “nova” arte. Desta forma, temos “o sucesso do momento”, “a música do verão”, “o hit da estação”, apregoados por apresentadores de rádio e televisão, garotos-propaganda que são pagos para venderem um “produto”. E as pessoas, sem pensar no que estão lhes dizendo, “compram” o produto que lhes é oferecido. Assim, por intermédio de uma propaganda massiva veiculada em várias mídias, as empresas nos dizem o que devemos desejar.
Antigamente, a demanda por produtos era o que guiava a oferta. Os desejos dos consumidores geravam produtos que atendessem a esses desejos. Atualmente, as pessoas aprendem na tela da TV ou do computador o que devem desejar. Desta forma, quem antes era sujeito torna-se agora objeto.
Nem mesmo a cultura escapou a este processo. Passando a ser apenas mais uma mercadoria, assim como eletrônicos e roupas, os “produtos” culturais têm de ser consumidos de forma rápida. Livros e filmes, tão logo sejam assistidos, devem ser esquecidos para serem substituídos por outros livros e filmes que são diferentes apenas na aparência.
A cultura passou a ser usada como produto e agente do capitalismo. Os sujeitos, agora transformados em objetos, são alienados para que, por meio do “consumo” da “cultura”, possam livrar-se das tensões, frustrações e do esgotamento do dia-a-dia para que, revigorados, possam, no dia seguinte, trabalhar de forma mais produtiva para dar mais lucro ao seu patrão. Não é à toa que as empresas, cada vez mais, patrocinam “atividades culturais”. E, nesse caso, passa a ser considerado “arte” qualquer coisa que caia no gosto do público. Os “espetáculos” passam a ser uma catarse coletiva onde todos liberam suas frustrações, receios e raivas.
Assim, esgotado e refeito, o trabalhador não questiona a maneira pela qual está sendo usado. Apenas aguarda, ansioso, pelo próximo fim de semana, o qual trará um novo “show” onde ele poderá exorcizar suas novas frustrações e angústias.     

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Cansei de ser politicamente correto



O brasileiro adora modas! Sempre que aparece alguma moda nova, ele não para pra pensar se essa moda é válida ou não: ele simplesmente a abraça, como um náufrago abraçaria um tronco flutuando no meio do oceano. E a moda, agora, é o politicamente correto. Todos vivem se policiando para não deixar escapar alguma expressão ou atitude que possa ser considerada ‘politicamente incorreta’.
O ‘politicamente correto’ começou como uma tentativa de se evitar algumas atitudes reprováveis, como são os casos de racismo e de homofobia, entre outras. Porém, essa atitude acabou sendo levada ao extremo, ocasionando alguns exageros. Vemos, atualmente, muitas imbecilidades serem praticadas, protegidas pelo rótulo de “politicamente corretas”.
É óbvio que devemos evitar, a todo custo, casos de discriminação e preconceito. Porém, não podemos deixar que isso vire uma obsessão e que passemos a ver ‘discriminação’ e ‘preconceito’ em tudo. Determinadas palavras passaram a ser consideradas pejorativas, e seu uso passa a ser considerado preconceito ou discriminação. A língua passa a ser tratada como vilã, quando está apenas a serviço dos seus falantes.
O que precisamos compreender é que as palavras foram criadas para exprimir estados, impressões e sensações, bem como para designar objetos – reais ou imaginários. Em todas as línguas, encontramos o fenômeno da polissemia, quando uma mesma palavras adquire vários significados, algumas vezes, opostos. Na Língua Portuguesa, várias palavras adquiriram, ao longo do tempo, um sentido pejorativo. É o caso da palavra ‘medíocre’ que, no início, designava algo comum, que estava na média. Atualmente, a palavra tem sido utilizada com o significado de algo ‘ruim’, de ‘má qualidade’.
O mesmo vale para as palavras ‘preto’ e ‘negro’, designando pessoas que, atualmente, estão sendo rotuladas como ‘afrodescendentes’. Tanto negro como preto não são, necessariamente, palavras pejorativas. O sentido que se passou a dar a elas é que as tornaram pejorativas. Substituir estas palavras por ‘afrodescendentes’, a princípio, não altera nada. Uma pessoa racista não deixará de sê-lo apenas porque não pode mais dizer ‘negro’ ou ‘preto’.
O que tem que ser mudada é a mentalidade das pessoas. No Brasil, anos após a escravidão, os negros ainda não foram incorporados à nossa sociedade. Foram libertados para continuarem sendo párias, assim como no tempo da escravidão.
Politicamente correto não é ser proibido de dizer uma palavra, mas dar condição de vida digna a todos os cidadãos do país, sejam eles mulheres, negros ou homossexuais. É considerar todas as pessoas como sendo, realmente, iguais, e não apenas ver isso como um preceito religioso ou uma prescrição da Lei, mas que não tem nenhuma validade. É mudar a mentalidade das pessoas, não por meio de leis – que apenas impedem a manifestação pública do preconceito e da discriminação, mas que não os eliminam realmente –, e sim por meio de uma educação que mereça esse nome (o que não ocorre com a tão propalada “educação” brasileira).
Para alguém preconceituoso, ‘afrodescendente’ passará a ser utilizada como uma palavra pejorativa. E cada nova palavra inventada será utilizada da mesma maneira.
Roland Barthes dizia que a linguagem é fascista. Mas, na verdade, fascistas somos nós, que utilizamos a linguagem para expressar os nossos mais sórdidos sentimentos e ações. Pessoas e grupos que reclamam quando estão sendo oprimidos, passam a oprimir quando têm a oportunidade. Todo mundo tem um pouco de Hitler.
No final das contas, tudo não passa apenas de uma disputa pelo poder. E, nesse caso, voltamos a Barthes, que reconhecia que quase nada estava fora do poder. Nem mesmo a linguagem!   

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Literatura: ficção ou reflexo da realidade?



Pode a literatura explicar ou refletir a sociedade na qual ela está inserida, com todos os seus movimentos históricos, com todas as mudanças pelas quais as sociedades evoluem, ou a literatura apenas conta uma história que nada tem a ver com a HISTÓRIA, algo completamente fora de contexto, uma ficção no mais estrito sentido da palavra?
O desenvolvimento das ciências sociais, as quais passaram a se utilizar de métodos de análise tão rigorosos quanto os das ciências naturais, abriu um vastíssimo campo de estudos sobre diversas áreas. Dentre elas, a literatura passou a ser analisada como algo mais do que apenas histórias oriundas da imaginação de um escritor, mas como algo mais profundo, uma representação e/ou reflexo do real, uma maneira distorcida de se perceber a realidade, um espaço de crítica e várias outras tentativas de definição que, antes de definir, abrem mais espaço à especulação. Contudo, é inegável o impacto que a literatura, em geral, e alguns livros, em particular, têm sobre as sociedades. Por isso, a literatura acabou merecendo uma atenção à parte, sendo interpretada por meio de diversas tendências ao longo do tempo, à medida que as ciências sociais evoluíam. Livros passaram a ser analisados e a ser criticados de uma forma cada vez mais detalhada e com métodos cada vez mais precisos. A análise, ou crítica literária, estava começando a tornar-se uma ciência.
O livro, enquanto criação, é algo meramente subjetivo. Há alguém que o escreve e alguém que o lê. E, nesse diálogo, abre-se um imenso leque de interpretações que dependem do olhar que cada leitor lança sobre a obra. Contudo, sem deixar de lado interpretações pessoais, não podemos ignorar os novos olhares e compreensões que passamos a ter de campos como a História, a Psicanálise, a Linguística, a Biologia, a Sociologia etc. O avanço nesses campos permitiu que pudéssemos utilizá-los para – além de procurar entender o ser humano, individual e coletivamente – analisar a literatura e como ela se insere no nosso psiquismo e nas nossas relações interpessoais – seja refletindo ou inventando a realidade.
Essas ciências acima citadas auxiliaram no embasamento do que se convencionou chamar de métodos críticos. Dentre eles, temos: a crítica genética, a crítica psicanalítica, a crítica temática, a sociocrítica e a crítica textual. Esses métodos ora se afastam ora se aproximam, utilizando-se de elementos uns dos outros para compor um painel mais abrangente desse algo ao mesmo tempo simples e complexo que é a literatura. Como o próprio homem, aliás.
Eu poderia desenvolver uma comparação entre os diversos métodos na tentativa de encontrar os limites onde eles se encontram e se interpenetram. Porém, este tipo de trabalho se tornaria por demais longo e exaustivo, se prestando melhor a uma tese ou um livro. Assim, decidi-me a me ater apenas à sociocrítica.
Sociocrítica é um termo relativamente recente que serve para designar uma ideia antiga. A partir do momento em que as ciências sociais começaram a surgir e a se firmar como tais, começaram a refletir sobre as realidades socioculturais, tanto dentro de um mesmo espaço (cidade, país) quanto em espaços diferenciados. Além disso, essa análise passou a ser realizada tanto de forma sincrônica quanto diacrônica (e aqui há um paralelo com a linguística).
A mudança de mentalidade que ocorreu em virtude de diversos fatores que revolucionaram o modo de agir e de pensar – Iluminismo, descobrimento da América, Revolução Francesa etc. – fizeram com que a sociedade se transformasse, abrindo espaço para novas possibilidades e criando necessidades até então desconhecidas. A literatura anunciava e prenunciava essas mudanças sociais, participava dos acontecimentos ao invés de se manter à margem. A literatura, conforme dizia Madame de Staël, passara de ser arte para ser arma. O que combina com a máxima que diz que a pena é mais forte que a espada. A arte, antes vista como algo abstrato, passou a ser um produto da História (produto, enquanto refletia os movimentos sociais; produtora, quando atuava de modo a modificá-los). A produção literária assumiu um caráter de diálogo entre o autor e o leitor. Cabia à sociocrítica analisar o autor e a obra, não como divindades em seus Olimpos, mas como elementos participantes do diálogo com seu público. Para apoiar essa ideia, podemos recorrer à Claude Duchet quando este nos diz que a sociocrítica visa ao próprio texto como espaço onde se desenrola e se efetiva uma certa socialidade.
O Iluminismo e a Revolução Francesa, principalmente, tornaram a noção de política como algo que fazia parte do cotidiano das pessoas, e não como algo pertencente apenas a uma pequena classe de privilegiados. A filosofia, por exemplo, teve que rever seus conceitos de disciplina meramente especulativa, tornando-se uma disciplina política e atuante. Ou seja, de uma filosofia baseada em Platão, voltada para abstrações, passou-se a uma filosofia mais aristotélica, baseada no empirismo, analisando as coisas como elas se apresentam ao mundo. A própria visão de ‘homem’ passou por mudanças, substituindo-se a visão religiosa por uma visão do homem como um ser ativo social e historicamente, um elemento provocador de mudanças por meio de sua influência no meio no qual está inserido. Esse homem passou a se questionar sobre o seu lugar e propósito no mundo. Da mesma forma, a literatura passou a ser questionada sobre sua utilidade e o seu significado. Percebeu-se que a literatura altera-se de acordo com as mudanças da sociedade, adapta-se às mudanças no pensamento e nas ciências. A literatura segue o curso da História, de um modo diacrônico, adaptando-se às configurações que vão se sucedendo. Mas a literatura não é uma simples documentação de fatos históricos – para isso existe a História. Ao mesmo tempo que ela reflete, ela também constrói, também inventa.
Nesse ponto, vale ressaltar a importante contribuição das ideias de Karl Marx. O marxismo procurava explicar os acontecimentos históricos por meio das relações sociais e da luta de classes, e a literatura não escapou a essa ótica. Para o marxismo, “a literatura e a cultura deveriam ser repensadas como efeitos e como meios de uma última instância econômico-social”. Isso porque, segundo eles, “a literatura não é apenas uma prática restrita aos grandes escritores. Ela é também um mercado e uma prática extensiva”.
Entretanto, preso a essa visão reducionista onde as relações econômicas tornavam-se o foco central de sua análise, o marxismo que executava suas primeiras leituras ficava bitolado a uma análise desprovida de um rigor científico. Posteriormente, a interpretação marxista buscou auxílio no campo da semiótica literária e da psicanálise, o que abriu um novo leque de possibilidades.
É, de fato, inegável que o meio exerce uma forte influência sobre o trabalho literário. Quando escrevem, os autores refletem a sua época, a sua classe social e o pensamento dominante. Escritores que consideramos ‘machistas’, por exemplo, estavam simplesmente espelhando a condição da mulher à época, quando o conceito de ‘machismo’ sequer existia. O mesmo é válido para o preconceito racial e para a homofobia. Mas também é inegável que muitos escritores mantêm-se à parte de determinados acontecimentos de sua época, muitas vezes por não perceberem a importância que aquele fato terá futuramente. É o que ocorreu com os acontecimentos de 1968 em Paris, Praga e México. O ano de 68 foi emblemático e está tendo reflexos até hoje. Recentemente, foram lançados diversos livros sobre o tema, no Brasil e no mundo. Entretanto, 1968 não está na literatura de 1968. Apesar de todos os protestos (especialmente os de Paris, em maio) e passeatas, 1968 não fez parte da literatura da época. Posteriormente, com os seus reflexos aparecendo aqui e ali, começou a figurar na literatura, culminando na enxurrada de livros que têm sido escritos atualmente. Só muitos anos depois percebeu-se a influência que aquele ano teve para o mundo. Na época, contudo, enquanto o processo histórico ainda estava se desenrolando, isso passou despercebido.
Existe, também, um processo de vislumbre de um processo histórico que ainda está se desenrolando e projetá-lo para o futuro. Alguns autores, analisando fatos históricos recentes, cujos efeitos ainda estão começando a se fazer sentir, projetam um futuro decorrente daquele momento. É o que acontece em livros como “A revolução dos bichos”, de George Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley. Analisando aquele momento histórico, eles projetam os seus efeitos em um determinado período de tempo, muitas vezes alcançando uma precisão inacreditável nas suas previsões.
Há, ainda, a análise sobre um fato histórico que não ocorreu. É o que acontece em livros como “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick. Nesse livro, o autor imagina como seria o mundo se a Alemanha e o Japão tivessem vencido a 2ª Guerra Mundial. É um interessante jogo especulativo que mostra o que poderia ter acontecido se a história tivesse tomado outro rumo.
Temos, nesse último exemplo, uma tentativa de ler nossa própria história. O exemplo de 1968, ao contrário, demonstra a nossa incapacidade de ler a história no momento em que ela está acontecendo – temos, como exemplo, as revoluções comunistas, que acabaram se tornando regimes totalitários.
A sociocrítica, longe de ser apenas um método crítico, é uma maneira de descobrirmos a nossa relação com o outro e com o mundo. Uma maneira de entendermos nossa própria influência dentro de um contexto histórico sempre sujeito a mudanças. E nós, participantes desse contexto, mudamos junto com ele. Somos como Alice, de Lewis Carrol, quando ela reclama: “nunca tenho certeza do que eu vou ser de um minuto para o outro!”.         
     

sábado, 15 de setembro de 2012

A literatura e a escola



A literatura sempre exerceu uma grande influência no pensamento e comportamento humanos ao longo do tempo. Várias obras retratam com fidelidade os usos e costumes de uma época. Ler alguns romances equivale a ler um livro de História. Por esse fato, a literatura passou a ser uma disciplina do Ensino Médio, sendo também utilizada, em menor grau, no Ensino Fundamental. Além disso, é matéria obrigatória no curso de Letras. Porém, devemos analisar como essa disciplina vem sendo praticada nas nossas escolas.
Atualmente, o ensino de literatura se restringe a um “decoreba” de nomes de autores, obras e escolas literárias. O aluno tem de decorar qual obra iniciou determinado período e qual obra finalizou-o; quais as características desse período; os principais autores e as datas de lançamento de suas respectivas obras. O professor faz um resumo das principais obras, citando os personagens principais e alguns secundários que possuem relevância na história. De posse destas informações, o aluno é considerado apto para fazer uma prova.
Mas, e a obra em si? Basicamente, os alunos aprendem os nomes de vários autores e de suas respectivas obras, porém, geralmente não lê nenhuma delas. Conhece “por alto” a história de um determinado romance, mas nunca o lê por inteiro. O aluno acaba não desfrutando do prazer de ler um livro. Consequentemente, esse aluno acabará por não se tornar um leitor.
A maioria dos leitores, quando lê um livro, não o faz com o objetivo de analisá-lo em suas estruturas mais intricadas e profundas, mas sim pelo exclusivo prazer de desfrutar de uma boa história, assim como ele faz quando assiste a um DVD. O leitor comum não precisará, em sua vida futura, de conhecer movimentos literários e suas respectivas características. É claro que, em alguns casos, esse conhecimento auxiliará o leitor a compreender melhor a obra em questão, mas isso não é uma condição ‘sine qua non’. O leitor não precisa ser um profundo conhecedor de História do Brasil para compreender, por exemplo, “O guarani” ou “O cortiço”.
Ao invés de se preocupar em ensinar questões externas à obra, o professor de literatura deveria, primeiramente, ensinar o aluno a gostar de ler e, para isso, deveria incentivá-lo (eu disse incentivá-lo, não obrigá-lo) a ler algumas obras e, posteriormente, discuti-las em sala de aula. Contudo, a discussão deveria ficar restrita à história narrada na obra. Questões ligadas à sua estrutura devem ficar a cargo dos estudiosos de literatura (professores, críticos etc.), e não do leitor comum.
É importante revermos nossos conceitos e objetivos. Ouvimos muitas pessoas ligadas à educação dizerem que os alunos de hoje não leem mais. Porém, muitos não leem por não receberem o incentivo adequado. As aulas de literatura, com sua enxurrada de nomes de autores, nomes de obras, escolas literárias e datas, acabam por afastar o aluno dos livros, ao invés de aproximá-los.