Na literatura,
por vezes, ouvimos alguém dizer que, por exemplo, Tolstoi é um escritor
universal e que José de Alencar é regionalista. Essa discussão é antiga, mas
persiste até hoje, com alguns pesquisadores debruçando-se sobre esta questão.
Vários autores são classificados dentro de uma destas categorias. Porém,
definir o que é universal e o que é regional não é tarefa fácil, pelo
contrário, é algo que parece ser praticamente impossível de ser feito dentro de
uma perspectiva objetiva.
Primeiramente, a
questão que envolve definir um escritor como universal ou regional surge da
necessidade, por vezes dispensável, que o ser humano tem de rotular todas as
coisas dentro de uma categoria específica, ecos de um cientificismo que pretende
explicar todas as coisas à luz da ciência e da razão, mesmo as que escapam ao
seu controle. Em segundo lugar, teríamos que ter uma definição bem clara do que
seria o universal e o regional, principalmente em termos de literatura, o que
parece não ser o caso, dada as divergências entre os próprios estudiosos do
assunto.
Para ser
considerado universal, um escritor deveria atingir, com suas histórias, pessoas
de todos os lugares, ou seja, pessoas de todos os lugares deveriam se identificar
com os seus personagens, com seus anseios, inquietações, desejos, frustrações.
E, para ser considerado regionalista, um escritor deveria escrever sobre
personagens e locais específicos, que retratassem uma região delimitada e
personagens com características específicas, tais como linguagem, atitudes,
maneiras de ver e se posicionar diante da vida etc. Nesse caso, voltando ao
início do texto, poderíamos dizer que os personagens de Tolstoi, com suas
angústias, desejos etc., seriam universais, já que esses sentimentos poderiam
ser sentidos por personagens do mundo todo, desde Moscou e São Petersburgo até
Paris, Londres ou Roma. E o nosso José de Alencar, com seus índios
romantizados, seria regionalista, pois trataria de personagens específicos e restritos
a uma região delimitada.
Porém, se
analisarmos os textos de escritores consagrados, como Tolstoi, Dostoievski,
Flaubert e Oscar Wilde, por exemplo, poderíamos mesmo considerá-los universais?
Será que pessoas de todas as regiões do mundo, de todas as classes sociais e de
todas as ideologias e tendências políticas se identificariam com seus
personagens? Será que todos sofrem as mesmas inquietações, têm os mesmos
anseios e desejos? E, talvez o mais importante, seus escritos não se referem a
locais específicos geograficamente? Será que um sertanejo brasileiro ou um
africano se identificaria com personagens que vivem em um clima frio e sofrem
com a neve e a chuva constantes? Aqueles ambientes sofisticados descritos pelos
escritores citados acima podem ser percebidos e compreendidos por pessoas que
moram em uma favela brasileira ou em um bairro pobre dos Estados Unidos ou em uma
vila miserável na China? Se a resposta for não, onde estaria o elemento
‘universal’ destes autores?
Quanto à questão
do regionalismo, parece haver uma espécie de consenso entre os defensores deste
termo que, para receber esta classificação, o autor deve escrever sobre locais
específicos geograficamente, tais como o sertão, a Amazônia, os pampas, e sobre
personagens restritos a uma área determinada, como o gaúcho da fronteira, o
sertanejo do nordeste ou o caboclo da Amazônia. Se uma história se passa no Rio
de Janeiro ou em São Paulo,
por exemplo, não seria considerada regionalista. Porém, uma pergunta que se
impõe: Rio de Janeiro e São Paulo não seriam, também, ‘regiões’? Se
considerarmos que todos os locais são regiões, então Tolstoi e Dostoiévski, com
suas histórias de czares, passadas nos salões de Moscou ou São Petersburgo, não
seriam, eles também, regionalistas? Será que as belas histórias de Guimarães
Rosa e do amazonense Milton Hatoum não emocionam leitores de todo o Brasil e,
até mesmo, do mundo? Será que universal seriam apenas os autores estrangeiros
ou, no Brasil, os autores restritos ao eixo Rio-São Paulo? Machado de Assis
limitava suas histórias à cidade do Rio de Janeiro, mas não é considerado
regionalista; Milton Hatoum, que ambienta suas histórias na cidade de Manaus
e/ou outras cidades do Amazonas, é.
Será que não
temos, nos subterrâneos desta discussão, uma espécie de preconceito, não apenas
literário, mas também de ordem política e social, relegando os elementos
considerados marginais a uma categoria diferenciada? Índios, caboclos,
sertanejos e, até mesmo, nortistas e nordestinos, acabariam sendo relegados a
um estrato inferior em uma sociedade elitista e preconceituosa, enquanto o
estilo ‘europeu’ de sociedade, urbano, seria considerado universal? Essa
divisão, mais do que literária, não refletiria o pensamento de uma sociedade
elitista, separando os privilegiados daqueles que estão à margem da sociedade?
Dizem que o
escritor, longe de estar alheio ao seu tempo, reflete na sua obra os
pensamentos, as mudanças e as estruturas vigentes no seu tempo. Nesse caso, a
literatura, mais do que um reflexo, seria a crônica desse status quo dominante
exibindo, mesmo que de maneira não intencional, o retrato de uma realidade
disfarçada de ficção.
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