terça-feira, 22 de maio de 2012

Viagem ao som de uma ‘Frauta de Barro’


Luiz Bacellar foi um dos fundadores do Clube da Madrugada, movimento artístico surgido na Manaus dos anos 50 (oficialmente, o movimento nasceu na madrugada de 22 de novembro de 1954), que nasceu da inquietação e do descontentamento de jovens artistas com o clima provinciano de uma cidade que os sufocava. O intuito desses inquietos jovens era o de romper com o comodismo e a estagnação no qual se encontravam as artes naquele momento, promovendo uma renovação que propiciaria uma transformação da mentalidade da própria cidade e da sociedade manauara. A influência desse movimento pode ser sentida até hoje nos jovens artistas amazonenses.
Um dos livros mais importantes da obra de Luiz Bacellar é “Frauta de barro”, reunião de poemas/memórias, ou memórias relembradas em forma de poemas. Munido de sua ‘frauta de barro’, que “em menino achei um dia / bem no fundo de um surrão / um frio tubo de argila / e fui feliz desde então”, o poeta nos leva em uma viagem por uma cidade que existiu e que ainda existe, de fato ou apenas na memória do poeta.
Antes de iniciar a viagem, o poeta, nu, veste-se, não com as melhores roupas, as roupas de domingo, usadas para ir à missa ou a eventos mais solenes, mas veste-se de Natureza, ele próprio tornado uno com a magnificência da enorme floresta que o rodeia. “Com seu paletó de brumas / e suas calças de pedra, / vai o poeta”, “Ele leva sobre os ombros / a cachoeira do lago / (cachecol à moda russa) / levemente debruada / de um fino raio de sol”. Após vestir-se, o poeta rememora elementos simples anteriormente utilizados pelas pessoas em “10 sonetos de bolso”: o lenço, o canivete, o relógio de bolso, o porta-níqueis, a caixa de fósforos – “Minha cápsula de incêndios, / meu cofre de labaredas! / meu pelotão de alva farda / e altas barretinas pretas”. Devidamente paramentado, como um dândi o poeta flana pelas ruas da cidade, relembrando lugares, pessoas, mitos, histórias e fatos.
O livro divide-se em várias partes. Como um cicerone guiando um turista, o poeta nos guia pelas várias partes da cidade, nos desvelando suas belezas, seus crimes, suas partes obscuras, seu passado e seu futuro. Após vestir-se e encher seus bolsos com os objetos de seus ‘10 sonetos de bolso’, o poeta nos leva para conhecer a cidade. A primeira parada é ‘Romanceiro Suburbano’, onde o poeta nos fala de bairros da cidade e de casos acontecidos ou fantasiados, os fatos unindo-se aos mitos para formar a história da cidade. Temos aí lugares conhecidos como a Rua da Conceição, o Bairro do Céu, o Beco do “Pau-não-cessa”; coisas prosaicas como um “Torneio de Papagaios” e uma “Receita de Tacacá”, além de casos fantásticos tais como “Santa Etelvina” e “O Caso da Neca”. Sobre este último, começa assim o poeta: “ ‘Eu juro, senhor juiz, / não fui eu quem a matou, / que a pior fera do mundo / me agarre se assim não for! / juro! Por São Jorge eu juro / que é meu santo protetor!’ /  E o juiz acreditou...”. e, punida pela mentira proferida, Neca foi agarrada por um jacaré que “com a Neca nas mandíbulas / três vezes ele boiou / para que todo mundo visse / a falsa que perjurou”.
Depois o poeta nos leva para os ‘Sonetos Provincianos’, como “Porta para o quintal”, onde ele nos conta: “As telhas debruçadas dos beirais / vão com as calhas de lata, lá entre elas, / coisas de chuva e vento conversando / quais velhinhas comadres; nos varais / a roupa brinca de navio de velas / minha perdida infância reinventando...”.
Como todo bom cicerone, o poeta não poderia deixar de nos levar a pontos turísticos, como em ‘Três Noturnos Municipais’, quando ele nos leva para conhecer, por exemplo, a Praça da Saudade e a rampa do mercado. No “Noturno da Rampa do Mercado”, o poeta nos diz: “As luzes das barcaças sonham ventos / quando em águas propícias e serenas / no cansado ancorar brilham pequenas / em almos lucilares cismarentos...”.
Em ‘Dois Escorços’, o poeta mistura amor, mar e misticismo. No poema “Rimance Praiano”, temos: “Que coisas loucas dizíeis / sussurrando aos meus ouvidos... / Deixavam leves ourelas / na orla fofa da areia / nossos passos distraídos...”. Em “Canção do Grumete”, temos: “Fundaram-se outros limites / além do oculto horizonte. / A caravela pequena / bóia no mar; infinita...”, remetendo-nos aos poetas portugueses que têm no mar e nas conquistas portuguesas os seus mais caros temas.
Por fim, o poeta encerra sua viagem dedicando poemas a quem o levou a viajar por terras desconhecidas, descortinando-lhe todo um mundo novo: João Cabral de Melo Neto, Dante Allighieri, Rilke, Hölderlin... Aqui ele assinala, não o fim da viagem, mas o início de uma próxima. Ou a continuação de uma eterna viagem, sem pausas.
O livro é uma mistura de memória, ficção, roteiro de viagem, história. O que era e o que virá a ser. As mudanças pelas quais passa a cidade e, junto com ela, o próprio poeta, testemunha ocular da marcha inclemente do tempo. O livro é um mosaico que nos mostra imagens diferentes que se unem para formar um todo coeso, assim como a própria cidade descrita pelo poeta forma um mosaico com lugares, pessoas e paisagens diferentes unidas em um todo, nem sempre coeso, mas ainda assim um todo. A própria cidade vai sendo moldada durante a viagem do poeta, cidade moldada do mesmo barro que foi utilizado para moldar a frauta, o mesmo barro utilizado para moldar os homens.
Para narrar esta viagem, o poeta passeia por diversos estilos, não se detendo em nenhum: sonetos, redondilhas, versos livres. O novo e o antigo se unem não só nas imagens evocadas pelo poeta – o que era e o que agora é –, mas também na estrutura dos poemas, onde versos livres, sem métrica e sem rimas, convivem com decassílabos e redondilhas. A história da cidade se funde com a história da poesia, a literatura não mais servindo para narrar uma viagem, mas ela própria tornada uma viagem.
Bacellar nos leva, ao som de sua frauta, assim como o flautista de Hamelin levava os ratos, hipnotizados pelo som que saía do seu instrumento. 
   
 

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