quinta-feira, 31 de maio de 2012

Pão, Circo e UFC


Outro dia, vendo um comercial sobre um evento de UFC (Ultimate Fighting Championship), ocorreu-me um pensamento: o homem de hoje, com toda a sua tecnologia e comodidades da vida moderna, é muito diferente dos romanos que iam ao Coliseu para assistir às lutas de gladiadores? Analisando o que acontece modernamente e o que acontecia antigamente, podemos deduzir que a resposta é NÃO!
Os romanos que iam ao Coliseu não o faziam apenas para ver um gladiador derrotar o outro, e sim para ver um gladiador MATAR o outro. O que interessava ali era ver o sangue jorrando do corpo do perdedor. E, se o vencedor também morresse, tanto melhor. Era um bônus! Além disso, havia também a luta entre homens e feras: leões, ursos e tigres enfrentavam gladiadores armados e, muitas vezes, as feras eram colocadas para lutarem entre si. O gladiador tinha que matar a fera ou ser morto por ela. De qualquer forma, independente de a luta ser entre dois homens ou entre um homem e uma fera, ela só acabava com a morte de uma das partes.
O que temos atualmente não é um cenário muito diferente. Os modernos gladiadores já não usam lanças, espadas, escudos ou redes, e sim luvas. Mas, tirando esta diferença, o resto não é muito diferente. A ‘torcida’ que comparece a estes eventos ou que o assiste pela televisão quer apenas uma coisa: ver sangue! Igual aos romanos que iam ao Coliseu querendo ver a morte de um dos gladiadores. Morte que, eventualmente, acontece. Não é raro em torneios de artes marciais – nos quais o UFC e o boxe estão incluídos – presenciarmos a morte de um dos lutadores. Apesar de todas as regras e normas de segurança existentes nestes torneios, a ocorrência de mortes não é algo impossível.
A torcida destes eventos começa a se agitar quando os lutadores do evento principal estão para entrar no ringue ou octógono – como acontecia antigamente, quando ocorriam lutas entre gladiadores menos ‘famosos’ antes da entrada dos lutadores principais. Quando eles começam a se esmurrar, a torcida delira, esperando o nocaute de algum deles e extasiada pelo sangue que começa a manchar o chão – muitas vezes na cor branca, para aparecer melhor as manchas de sangue. Os lutadores de UFC e de boxe são admirados como o eram os antigos gladiadores.
Mas, pelo menos, acabaram-se com as lutas entre feras e entre homens e animais, alguém pode dizer. Não, não acabaram. Temos, ainda hoje, rinhas clandestinas de lutas de galos e de lutas de cães. Os famosos cães pit-bulls foram desenvolvidos para enfrentarem touros. A própria tourada, muito apreciada na Espanha e em outros países, não deixa de ser uma luta entre um homem e uma fera. Em alguns eventos, o toureiro mata o touro cravando-lhes diversas espadas. Entretanto, às vezes o touro se vinga e acerta o toureiro.
Com toda a ‘modernidade’ da qual tanto ouvimos falar atualmente, ainda continuamos presos a certos comportamentos ancestrais. Chamamos os povos antigos de bárbaros, sanguinários, atrasados. Porém, acabamos por imitar-lhes as atitudes, agindo exatamente como eles agiam em diversas situações.
Os Imperadores romanos perceberam que o povo queria apenas pão, circo e gladiadores, e dava isso para eles. Atualmente, as pessoas continuam querendo pão e esportes violentos. O UFC, sem trocadilhos, caiu como uma luva.
Contudo, existe uma diferença entre os romanos e os homens modernos: eles tinham que se dirigir até o Coliseu para assistir às lutas, nós temos a comodidade de assisti-las pelo pay-per-view.      

terça-feira, 29 de maio de 2012

É preciso ficar nu para protestar?


Temos presenciado, ultimamente, pessoas fazerem vários protestos motivados pelas mais diversas questões. Protestos contra políticos, contra medidas presidenciais, contra o desmatamento, contra a poluição, contra a violência. Pessoas protestam contra o aquecimento global, contra a produção de armas nucleares, contra a crueldade contra animais. Até aí, nada de mais. É um direito de todos os cidadãos protestar contra algo que não lhes agrade, desde que esse protesto se verifique de maneira ordenada, sem violência e baseado em argumentos plausíveis. Porém, um fato estranho que vem ocorrendo durante os protestos é o fato de as pessoas o fazerem nuas. Será que é preciso ficar nu para protestar?
Recentemente, na Ucrânia, torcedoras que estavam protestando contra a realização da Eurocopa, que será realizada em conjunto pela Ucrânia e Polônia, tentaram pegar a taça da competição, invadindo o local seminuas. Um pouco mais perto do nosso quintal, estudantes da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, realizaram um protesto em que algumas estudantes tiraram suas blusas, exibindo os seios. Além disso, algumas delas – a maioria, pelo que pude ver nas fotos – cobriram suas cabeças com as tais blusas que deveriam estar cobrindo seus seios.
Quero deixar bem claro que não sou puritano e nem estou aqui defendendo algum tipo de moral e bons costumes defendidos na época de nossos avós. Porém, não consegui ainda ver a conexão que existe entre alguns protestos e ficar nu. Se alguém estivesse defendendo a manutenção de uma praia de nudismo que tivesse sido fechada pelas autoridades, tudo bem, o ficar nu teria alguma relação com o protesto. Mas, em outros casos, não há uma conexão entre o protesto e o ato de ficar nu. Se reclamam da educação, ficam nus; se reclamam do preço da gasolina, ficam nus; se reclamam do desmatamento, ficam nus; se reclamam da poluição, ficam nus.
O que parece é que, como disse um amigo meu, há um desejo reprimido que é extravasado por ocasião de um protesto. As pessoas querem ficar nuas e usam os protestos como a ocasião ideal para isso. E, no final, as cenas de nudez chamam mais atenção do que o protesto em si, que acaba ficando em segundo plano.
No caso das estudantes da UFAM, o fato de ainda cobrirem o rosto nos leva a considerar outras questões. Quando vemos alguém cobrindo o rosto, é porque esse alguém está praticando algum ato repreensível, segundo o padrão social ou as leis. Se um torcedor de futebol, por exemplo, quer começar uma briga em um estádio – o que ele sabe ser errado –, cobre o rosto para não ser reconhecido pelas câmeras e punido. O mesmo ocorre com um ladrão que cobre o rosto antes de praticar um assalto. Ou seja, cobre o rosto por estar fazendo algo que ele sabe ser errado.
As garotas da UFAM cobriram o rosto por vergonha ou por estarem realizando um protesto que elas sabiam ser errado? Se era vergonha, a solução era simples: era só não terem tirado suas blusas; se o protesto não tinha sentido, era só não participarem dele. Ao tirarem a roupa e cobrirem o rosto, a meu ver, tiraram toda a credibilidade que o protesto possuía, portando-se como marginais que cobrem o rosto para praticar um crime e não serem reconhecidos.
Além disso, ficarem com os seios expostos não ajudaria em nada o protesto. Existem formas mais inteligentes de se chamar atenção para uma causa importante.      
  
 

sábado, 26 de maio de 2012

Idosos


Quem já passou perto de dois idosos e conseguiu ouvir parte da conversa, já deve ter notado que os temas utilizados por eles, geralmente, resumem-se a apenas dois: doenças e a pensão da aposentadoria. Todos os outros assuntos parecem derivar de um desses dois.
É incrível como os idosos – não só eles, mas principalmente eles – adoram se queixar de doenças, e até disputam quem está pior. Não é raro ouvirmos a seguinte conversa:
- E aí, como você está?
- Não muito bem. Tenho sofrido com reumatismo.
- Hum! E eu?
Se alguém diz que está com dor de cabeça, a dor de cabeça do outro é pior; se alguém tem problemas de estômago, os problemas de estômago do outro é pior. Reumatismo? Nem me fale! Você não sabe como tenho sofrido!
E as trocas de receitas entre os “doentes”? Sempre que um reclama de alguma doença, aparece alguém com a solução:
- Estou sentindo umas dores abaixo das costelas, do lado direito.
- Ah! O filho da empregada do meu vizinho sentia a mesma coisa. Tomou um chá de folha de abacateiro com mel e gengibre e pronto. Foi tiro e queda!
E, então, o outro vai e faz a tal receita de chá de folha de abacateiro com mel e gengibre e toma. E continua sentindo as mesmas dores! E o pior é quando receitam remédios. O ‘doente’ toma o tal remédio e, ao invés de ficar bom do problema que sentia, passa a sentir outros. Além de não curar, o remédio acaba fazendo mal.
Falar de doenças leva a um outro assunto: a morte de conhecidos. Quando alguém fala de uma determinada doença, alguém lembra que “o fulano morreu disso há um mês”. E aí eles começam a lembrar de todas as pessoas que eles conheciam e que já partiram desta para uma melhor. Entre eles, parece haver uma aposta: quem será o último a morrer? Quem resistir mais tempo é o vencedor.
O outro assunto que domina as conversas dos idosos é a pensão que eles recebem de aposentadoria. E, muitas vezes, esse assunto deriva das doenças das quais eles sofrem. Começam a falar de doenças, e aí falam dos remédios que compram e, então, para falar de suas respectivas pensões é um passo.
Os idosos parecem sentir um prazer masoquista em reclamar de suas pensões. Todos querem ser aquele cara injustiçado, que recebe uma miséria. Um centavo recebido a menos é motivo de orgulho.
- Eu recebo oitocentos reais de pensão.
- E eu, que só recebo setecentos e noventa e cinco?
Às vezes, você escuta uma conversa em que os idosos estão falando mal do governo. Como eles chegaram a isso? Começaram falando da pensão que recebem. Alguém reclamou que é pouco. Outro disse que não dá para nada. Alguém lembra que, há muito tempo, eles não têm um reajuste decente. Alguém diz que a culpa é do governo. Pronto! A conversa descamba para a política. Mas a origem foi a pensão da aposentadoria.
Muitos dos nossos idosos não possuem alguma coisa com o que se preocupar. Assim, ficam presos a coisas do dia-a-dia, rotineiras. Doenças, salários, pensões, falar mal dos vizinhos. Se apegam a coisas mesquinhas como uma forma de se sentirem vivos, úteis. Alguns se entregam à falta do que fazer e se tornam pessoas apáticas, verdadeiros vegetais que, de fato, já morreram, mas que esqueceram de enterrar. Zumbis vagando pelo mundo sem compreendê-lo e sem encontrarem seu lugar nele.            
 

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O indistinto limite entre o Universal e o Regional


Na literatura, por vezes, ouvimos alguém dizer que, por exemplo, Tolstoi é um escritor universal e que José de Alencar é regionalista. Essa discussão é antiga, mas persiste até hoje, com alguns pesquisadores debruçando-se sobre esta questão. Vários autores são classificados dentro de uma destas categorias. Porém, definir o que é universal e o que é regional não é tarefa fácil, pelo contrário, é algo que parece ser praticamente impossível de ser feito dentro de uma perspectiva objetiva.
Primeiramente, a questão que envolve definir um escritor como universal ou regional surge da necessidade, por vezes dispensável, que o ser humano tem de rotular todas as coisas dentro de uma categoria específica, ecos de um cientificismo que pretende explicar todas as coisas à luz da ciência e da razão, mesmo as que escapam ao seu controle. Em segundo lugar, teríamos que ter uma definição bem clara do que seria o universal e o regional, principalmente em termos de literatura, o que parece não ser o caso, dada as divergências entre os próprios estudiosos do assunto.
Para ser considerado universal, um escritor deveria atingir, com suas histórias, pessoas de todos os lugares, ou seja, pessoas de todos os lugares deveriam se identificar com os seus personagens, com seus anseios, inquietações, desejos, frustrações. E, para ser considerado regionalista, um escritor deveria escrever sobre personagens e locais específicos, que retratassem uma região delimitada e personagens com características específicas, tais como linguagem, atitudes, maneiras de ver e se posicionar diante da vida etc. Nesse caso, voltando ao início do texto, poderíamos dizer que os personagens de Tolstoi, com suas angústias, desejos etc., seriam universais, já que esses sentimentos poderiam ser sentidos por personagens do mundo todo, desde Moscou e São Petersburgo até Paris, Londres ou Roma. E o nosso José de Alencar, com seus índios romantizados, seria regionalista, pois trataria de personagens específicos e restritos a uma região delimitada.
Porém, se analisarmos os textos de escritores consagrados, como Tolstoi, Dostoievski, Flaubert e Oscar Wilde, por exemplo, poderíamos mesmo considerá-los universais? Será que pessoas de todas as regiões do mundo, de todas as classes sociais e de todas as ideologias e tendências políticas se identificariam com seus personagens? Será que todos sofrem as mesmas inquietações, têm os mesmos anseios e desejos? E, talvez o mais importante, seus escritos não se referem a locais específicos geograficamente? Será que um sertanejo brasileiro ou um africano se identificaria com personagens que vivem em um clima frio e sofrem com a neve e a chuva constantes? Aqueles ambientes sofisticados descritos pelos escritores citados acima podem ser percebidos e compreendidos por pessoas que moram em uma favela brasileira ou em um bairro pobre dos Estados Unidos ou em uma vila miserável na China? Se a resposta for não, onde estaria o elemento ‘universal’ destes autores?
Quanto à questão do regionalismo, parece haver uma espécie de consenso entre os defensores deste termo que, para receber esta classificação, o autor deve escrever sobre locais específicos geograficamente, tais como o sertão, a Amazônia, os pampas, e sobre personagens restritos a uma área determinada, como o gaúcho da fronteira, o sertanejo do nordeste ou o caboclo da Amazônia. Se uma história se passa no Rio de Janeiro ou em São Paulo, por exemplo, não seria considerada regionalista. Porém, uma pergunta que se impõe: Rio de Janeiro e São Paulo não seriam, também, ‘regiões’? Se considerarmos que todos os locais são regiões, então Tolstoi e Dostoiévski, com suas histórias de czares, passadas nos salões de Moscou ou São Petersburgo, não seriam, eles também, regionalistas? Será que as belas histórias de Guimarães Rosa e do amazonense Milton Hatoum não emocionam leitores de todo o Brasil e, até mesmo, do mundo? Será que universal seriam apenas os autores estrangeiros ou, no Brasil, os autores restritos ao eixo Rio-São Paulo? Machado de Assis limitava suas histórias à cidade do Rio de Janeiro, mas não é considerado regionalista; Milton Hatoum, que ambienta suas histórias na cidade de Manaus e/ou outras cidades do Amazonas, é.
Será que não temos, nos subterrâneos desta discussão, uma espécie de preconceito, não apenas literário, mas também de ordem política e social, relegando os elementos considerados marginais a uma categoria diferenciada? Índios, caboclos, sertanejos e, até mesmo, nortistas e nordestinos, acabariam sendo relegados a um estrato inferior em uma sociedade elitista e preconceituosa, enquanto o estilo ‘europeu’ de sociedade, urbano, seria considerado universal? Essa divisão, mais do que literária, não refletiria o pensamento de uma sociedade elitista, separando os privilegiados daqueles que estão à margem da sociedade?
Dizem que o escritor, longe de estar alheio ao seu tempo, reflete na sua obra os pensamentos, as mudanças e as estruturas vigentes no seu tempo. Nesse caso, a literatura, mais do que um reflexo, seria a crônica desse status quo dominante exibindo, mesmo que de maneira não intencional, o retrato de uma realidade disfarçada de ficção.          
         

terça-feira, 22 de maio de 2012

Viagem ao som de uma ‘Frauta de Barro’


Luiz Bacellar foi um dos fundadores do Clube da Madrugada, movimento artístico surgido na Manaus dos anos 50 (oficialmente, o movimento nasceu na madrugada de 22 de novembro de 1954), que nasceu da inquietação e do descontentamento de jovens artistas com o clima provinciano de uma cidade que os sufocava. O intuito desses inquietos jovens era o de romper com o comodismo e a estagnação no qual se encontravam as artes naquele momento, promovendo uma renovação que propiciaria uma transformação da mentalidade da própria cidade e da sociedade manauara. A influência desse movimento pode ser sentida até hoje nos jovens artistas amazonenses.
Um dos livros mais importantes da obra de Luiz Bacellar é “Frauta de barro”, reunião de poemas/memórias, ou memórias relembradas em forma de poemas. Munido de sua ‘frauta de barro’, que “em menino achei um dia / bem no fundo de um surrão / um frio tubo de argila / e fui feliz desde então”, o poeta nos leva em uma viagem por uma cidade que existiu e que ainda existe, de fato ou apenas na memória do poeta.
Antes de iniciar a viagem, o poeta, nu, veste-se, não com as melhores roupas, as roupas de domingo, usadas para ir à missa ou a eventos mais solenes, mas veste-se de Natureza, ele próprio tornado uno com a magnificência da enorme floresta que o rodeia. “Com seu paletó de brumas / e suas calças de pedra, / vai o poeta”, “Ele leva sobre os ombros / a cachoeira do lago / (cachecol à moda russa) / levemente debruada / de um fino raio de sol”. Após vestir-se, o poeta rememora elementos simples anteriormente utilizados pelas pessoas em “10 sonetos de bolso”: o lenço, o canivete, o relógio de bolso, o porta-níqueis, a caixa de fósforos – “Minha cápsula de incêndios, / meu cofre de labaredas! / meu pelotão de alva farda / e altas barretinas pretas”. Devidamente paramentado, como um dândi o poeta flana pelas ruas da cidade, relembrando lugares, pessoas, mitos, histórias e fatos.
O livro divide-se em várias partes. Como um cicerone guiando um turista, o poeta nos guia pelas várias partes da cidade, nos desvelando suas belezas, seus crimes, suas partes obscuras, seu passado e seu futuro. Após vestir-se e encher seus bolsos com os objetos de seus ‘10 sonetos de bolso’, o poeta nos leva para conhecer a cidade. A primeira parada é ‘Romanceiro Suburbano’, onde o poeta nos fala de bairros da cidade e de casos acontecidos ou fantasiados, os fatos unindo-se aos mitos para formar a história da cidade. Temos aí lugares conhecidos como a Rua da Conceição, o Bairro do Céu, o Beco do “Pau-não-cessa”; coisas prosaicas como um “Torneio de Papagaios” e uma “Receita de Tacacá”, além de casos fantásticos tais como “Santa Etelvina” e “O Caso da Neca”. Sobre este último, começa assim o poeta: “ ‘Eu juro, senhor juiz, / não fui eu quem a matou, / que a pior fera do mundo / me agarre se assim não for! / juro! Por São Jorge eu juro / que é meu santo protetor!’ /  E o juiz acreditou...”. e, punida pela mentira proferida, Neca foi agarrada por um jacaré que “com a Neca nas mandíbulas / três vezes ele boiou / para que todo mundo visse / a falsa que perjurou”.
Depois o poeta nos leva para os ‘Sonetos Provincianos’, como “Porta para o quintal”, onde ele nos conta: “As telhas debruçadas dos beirais / vão com as calhas de lata, lá entre elas, / coisas de chuva e vento conversando / quais velhinhas comadres; nos varais / a roupa brinca de navio de velas / minha perdida infância reinventando...”.
Como todo bom cicerone, o poeta não poderia deixar de nos levar a pontos turísticos, como em ‘Três Noturnos Municipais’, quando ele nos leva para conhecer, por exemplo, a Praça da Saudade e a rampa do mercado. No “Noturno da Rampa do Mercado”, o poeta nos diz: “As luzes das barcaças sonham ventos / quando em águas propícias e serenas / no cansado ancorar brilham pequenas / em almos lucilares cismarentos...”.
Em ‘Dois Escorços’, o poeta mistura amor, mar e misticismo. No poema “Rimance Praiano”, temos: “Que coisas loucas dizíeis / sussurrando aos meus ouvidos... / Deixavam leves ourelas / na orla fofa da areia / nossos passos distraídos...”. Em “Canção do Grumete”, temos: “Fundaram-se outros limites / além do oculto horizonte. / A caravela pequena / bóia no mar; infinita...”, remetendo-nos aos poetas portugueses que têm no mar e nas conquistas portuguesas os seus mais caros temas.
Por fim, o poeta encerra sua viagem dedicando poemas a quem o levou a viajar por terras desconhecidas, descortinando-lhe todo um mundo novo: João Cabral de Melo Neto, Dante Allighieri, Rilke, Hölderlin... Aqui ele assinala, não o fim da viagem, mas o início de uma próxima. Ou a continuação de uma eterna viagem, sem pausas.
O livro é uma mistura de memória, ficção, roteiro de viagem, história. O que era e o que virá a ser. As mudanças pelas quais passa a cidade e, junto com ela, o próprio poeta, testemunha ocular da marcha inclemente do tempo. O livro é um mosaico que nos mostra imagens diferentes que se unem para formar um todo coeso, assim como a própria cidade descrita pelo poeta forma um mosaico com lugares, pessoas e paisagens diferentes unidas em um todo, nem sempre coeso, mas ainda assim um todo. A própria cidade vai sendo moldada durante a viagem do poeta, cidade moldada do mesmo barro que foi utilizado para moldar a frauta, o mesmo barro utilizado para moldar os homens.
Para narrar esta viagem, o poeta passeia por diversos estilos, não se detendo em nenhum: sonetos, redondilhas, versos livres. O novo e o antigo se unem não só nas imagens evocadas pelo poeta – o que era e o que agora é –, mas também na estrutura dos poemas, onde versos livres, sem métrica e sem rimas, convivem com decassílabos e redondilhas. A história da cidade se funde com a história da poesia, a literatura não mais servindo para narrar uma viagem, mas ela própria tornada uma viagem.
Bacellar nos leva, ao som de sua frauta, assim como o flautista de Hamelin levava os ratos, hipnotizados pelo som que saía do seu instrumento. 
   
 

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O desabrochar de uma Violeta Branca

A poesia brasileira sempre foi fértil em nos presentear com grandes talentos ao longo do tempo. E, entre esses talentos, as mulheres, talvez por sua maior sensibilidade, sempre brilharam no cenário poético nacional. Poetisas como Cecília Meireles e Cora Coralina, entre tantas outras, nos brindaram com páginas de pura sensibilidade e beleza. Em um cenário geralmente dominado pelos homens, algumas mulheres brotaram como flores raras.
Uma dessas flores é uma poetisa que hoje é desconhecida até mesmo de seus conterrâneos: trata-se de Violeta Branca que, assim como a exótica Vitória-Régia, brotou das paragens amazônicas para exalar seu inquieto perfume, desfazendo os miasmas que impregnavam a produção cultural de Manaus na década de 30.
Violeta Branca foi uma transgressora em uma sociedade conservadora e provinciana. Seus poemas denunciavam e criticavam essa sociedade quando dizia que

O que me rodeia
Já não me encanta!

Seu primeiro livro, “Ritmos de Inquieta Alegria”, já no título nos mostra o caminho que ela nos convida a trilhar. Ela não nos convida para um plácido passeio, e sim para uma inquieta caminhada pela cidade e por nós mesmos, em uma

(...) exaustiva viagem
Sem calmaria e repouso.

Violeta Branca publicou o livro “Ritmos de Inquieta Alegria” em 1935, quando contava 20 anos de idade. No Brasil, o Modernismo já havia ganhado adeptos e deixara de ser visto como algo estranho e como uma espécie de não-arte. No Amazonas, entretanto, o Parnasianismo e o Romantismo ainda vigoravam com uma certa força, influenciando leitores e autores.
Remando contra a maré, Violeta Branca desabrochou exalando um perfume novo, que inebriava com o olor da novidade contra a mesmice e a rigidez da época. Nos seus poemas, Violeta Branca rompeu com o formalismo, renunciando ao rigor da metrificação tradicional e utilizando-se de uma linguagem simples, o que a aproxima da primeira fase do modernismo.
Sua poesia é repleta de sensualismo, expondo os desejos femininos e sua ânsia por liberdade em uma sociedade castradora, principalmente em relação às mulheres. Sua proposta, de expressar os desejos e paixões femininas, foi de uma extrema ousadia para as condições da época. Sua intensidade nos remete à força e ardência que encontramos em Cecília Meireles, como vemos no “Poema das tuas mãos”:

Tuas mãos imperiosas,
Tuas mãos rebeldes,
Cantam silenciosas aleluias de gestos,
Quando compõem poemas de volúpia,
Gritos incontidos de alegria pagã,
Correndo ligeiras
         Leves,
         Toturantes,
         No teclado branco de meu corpo...

Também encontramos em sua obra uma forte tendência ao regionalismo, como podemos verificar em passagens como

Nos poemas que ora escrevo
Não há, como outrora,
A suavidade de um enlevo...
São ardentes, tropicais:
Têm o cheirovde terra molhada
E o gosto das frutas maduras...

Violeta Branca foi uma voz dissonante que, ao casar-se e mudar-se para o Rio de Janeiro, onde veio a falecer em 7 de outubro de 2000, aos 85 anos, fechou-se durante algum tempo até que, em 1982, publicou seu segundo e último livro, “Reencontro: poemas de ontem e de hoje”. Sua inquieta e transgressora alegria ainda está no ar, nos incitando a uma viagem onde

Transformei-me em onda,
Para embalar no ritmo diferente
A galera inquieta e sem rumo
Do teu esquisito destino de marujo.

O destino de um marujo que, assim como os poemas de Violeta Branca, nos levam a uma viagem repleta de descobertas.    
               

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Um tesouro a ser descoberto


A literatura e o cinema estão repletos de livros e filmes sobre tesouros escondidos que, de uma forma inesperada, às vezes, ou após várias peripécias, acabam sendo descobertos. Na literatura, um destes tesouros ainda está por ser descoberto. Trata-se do escritor português Antônio Patrício, falecido em 1930 e dono de uma obra numericamente pequena, mas imensa sob o ponto de vista literário.
O escritor publicou um livro de poesias, em 1905, intitulado “Oceano”; um livro de contos, em 1910, intitulado “Serão Inquieto”; e quatro peças teatrais: O Fim (1909); Pedro, o Cru (1918); Dinis e Isabel (1919); e D. João e a Máscara (1924). Após a sua morte, foi publicado um livro de poesias, intitulado “Poesias”, em 1942.
Os poemas de Patrício, autor inserido no simbolismo-decadentismo, tratam de temas muito caros ao povo português, tais como o mar, as viagens e a saudade, por exemplo, temas ligados ao período glorioso da história portuguesa e que foi cantado em prosa e verso por vários autores, entre eles, Camões, o bardo da literatura portuguesa e o seu imortal “Os Lusíadas”.
No teatro, Patrício resgata personagens e temas da História de Portugal, trabalhando os mitos que cercaram estes personagens e que se misturam com a História propriamente dita. É o caso da Rainha Santa, Isabel, e o episódio de Inês de Castro, que se tornou rainha após a sua morte. 
O livro “Serão Inquieto” nos traz apenas seis contos, contos estes construídos de forma poética, podendo-se dizer que são prosa apenas na estética. São textos que nos falam de amor e de morte. Aliás, amor e morte confundem-se nos textos de Patrício, um parecendo precisar do outro para existir e se manifestar. O conto “Suze”, por exemplo, é uma comovente elegia, um hino ao amor. Um amor que vai sendo construído junto com o próprio conto, um amor interrompido pela morte. Aliás, no conto, tanto o amor quanto a morte, além de estarem ligados ao destino dos dois personagens, são construções que surgem com o desenrolar da história. Tanto o amor quanto a morte são presumidos pelo narrador em face do desaparecimento do objeto amado. O que o move, mais do que o amor, é a saudade, saudade do que possuía e que parece ter perdido.
A saudade permeia a obra de Patrício. Saudade do ser amado ou do passado glorioso de Portugal. O passado é o grande personagem dos seus textos, um tesouro ainda a ser descoberto pelo público brasileiro.